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POR QUE É IMPOSSÍVEL DEFINIR O BREGA COMO VANGUARDA

WALDICK SORIANO, UM DOS PRINCIPAIS ÍDOLOS DA MÚSICA BREGA.

Por Alexandre Figueiredo

Prevalece em setores influentes da opinião pública a falácia de que a música brega representa a vanguarda cultural brasileira. Embora essa visão tenha produzido aparente consenso e seu discurso envolve argumentos que parecem verossímeis, essa tese não tem o menor sentido lógico, por mais que seus ideólogos persistam em fazer crer que sim.

Em primeiro lugar, devemos analisar por que essa visão, que combina uma propaganda vitimista dos ídolos bregas, um senso etnocêntrico das elites intelectuais com a cultura popular e uma postura paternalista da burguesia pós-moderna em relação às classes populares.

Não se trata de uma visão marcada por uma generosidade natural ao povo pobre. Não se trata de um arroubo progressista de consideração às classes trabalhadoras nem um achado perdido de algum tesouro folclórico pelos intelectuais urbanos das capitais.

Trata-se, sim, de uma visão positivamente preconceituosa, por mais que ela carregasse o discurso do "combate ao preconceito". Afinal, a falácia de que o brega é vanguarda é apenas um juízo de valor para quem não acompanhou de perto a trajetória de ídolos cafonas e, por isso, sente a ilusão de que tudo soa novidadeiro para intelectuais isolados em seus ambientes de luxo e conforto.

CANSADOS DA "VELHA" MPB QUE O POVO DESCONHECE

Através do meu livro Esses Intelectuais Pertinentes..., questiono com muitos detalhes e fartas citações a visão oficial dos intelectuais envolvidos na campanha pela bregalização cultural, mostrando trechos das próprias ideias dessa elite pensante.

Entre os dados observados, está um certo cansaço dessa intelectualidade com a MPB que eles consideram "chata" e "cansativa", associada a nomes ligados aos festivais de música brasileira dos anos 1960 e seus sucessores diretos dos anos 1970. Geralmente, são artistas ligados à Bossa Nova, ao Clube da Esquina e ao Tropicalismo, marcados pela poesia e musicalidade que já soam tediosas para as elites intelectuais isolada no conforto de seus bons apartamentos.

O grande problema é que a MPB que esses intelectuais não aguentam mais ouvir não tem fácil acesso nas comunidades populares. É uma MPB que há muito tempo é apreciada pela sociedade abastada na qual se inserem esses intelectuais, mas que dificilmente chega às comunidades pobres, sobretudo em regiões distantes do interior do Brasil. O que o povo pobre e, sobretudo, interiorano, ouve de MPB autêntica é apenas uma pequena parcela que aparece nas trilhas de novelas da Rede Globo.

COLONIALISMO CULTURAL

Por outro lado, os fenômenos popularescos representam uma combinação do colonialismo cultural do hit-parade dos EUA, trazidos pela mídia regional - controlada por poderosos grupos oligárquicos locais ou seus concorrentes de igual simbologia de poder - , com a mentalidade provinciana de um povo isolado culturalmente e dotado de precária formação educacional.

Isso significa uma hierarquização cultural que tira o caráter espontâneo da cultura popular, principalmente se considerarmos que os fenômenos da música popularesca, desde os primeiros ídolos cafonas até modismos recentes como a "pisadinha" - derivado do "forró eletrônico" - , são na verdade tendências comerciais que se desenvolvem sob a tutela de empresas de entretenimento regionais.

A música brega e seus derivados não podem ser considerados vanguarda pelo simples aspecto de que pegam modismos já ultrapassados e assimilam tendências pop que haviam se tornado obsoletas há cinco, dez ou mesmo vinte anos.

E como se dá o desenvolvimento de uma tendência musical brega-popularesca? Primeiro, um modismo pop estrangeiro, seja dos EUA, Itália ou América Central, mas que fazem sucesso de todo modo em território estadunidense, encerra o seu ciclo depois de uma popularidade estrondosa. Com atraso, ele chega a regiões interioranas do Brasil, por intermédio de mercados centrais como São Paulo e seus programas de auditório da TV.

Segundo, esses modismos saturados encontram tradução em fenômenos locais, através da atuação das empresas de entretenimento, que contratam cantores, duplas ou grupos que passam a representar uma versão requentada e provinciana desses ritmos, que nas regiões interioranas são vistos como "novidades".

Terceiro, o modismo tardiamente assimilado recebe a leitura local da visão provinciana. Mesmo com tendências pop sendo comerciais e de valor artístico duvidoso até nos seus países de origem, como os EUA, a qualidade da expressão artística dos interioranos locais torna-se bem inferior, soando perto de uma paródia do ritmo matriz estrangeiro.

Em outras palavras, a precariedade cultural da região interiorana assimila modismos estrangeiros numa leitura que não pode ser confundida com a Antropofagia Cultural do intelectual modernista Oswald de Andrade, porque esta teoria não se aplica à colonização cultural trazida "de cima" pela mídia oligárquica regional para um público que pode não ser totalmente passivo, mas está longe de ser espontâneo e criativo como requer a intelectualidade residente léguas dali.

Trata-se de uma cultura precarizada, com poderosos empresários do entretenimento - embora aparentemente "mal vestidos" para dar a impressão de falsa modéstia, usando trajes casuais e tênis velhos, e, às vezes, com velhos paletós postos sobre essas roupas - lançando "artistas" que expressam os ritmos popularescos do momento.

Há um esquema que envolve essas empresas, associado aos meios de comunicação oligárquicos e as casas noturnas locais. É um esquema mercadológico rígido, que nada tem a ver com as narrativas oficiais e idealizadoras dos intelectuais que pensam que é o povo pobre que faz vaquinha para fazer a música que "sabem fazer" e buscam patrocínio e financiamento em fontes diversas do mercado local.

Os sons resultantes podem soar novidade para o intelectual burguês que, querendo se jogar para a plateia - embora o público médio nem saiba quem é esse intelectual - , exalta o ritmo popularesco do momento e cria uma narrativa que, em que pese o uso de recursos sofisticados como a História das Mentalidades e o Novo Jornalismo, soa problemática em seus argumentos.

Isso se deve, também, a um certo revanchismo, a um certo "ódio à MPB" que intelectuais pós-modernos das grandes capitais, também preocupados em explorar uma imagem ao mesmo tempo populista e provocativa de si mesmos, passam a louvar os fenômenos popularescos como se fossem a "salvação" para a cultura popular brasileira.

Há também uma aparente confusão entre o uso humorístico da música brega - satirizando o som visto em programas popularescos de televisão - por roqueiros ou músicos de vanguarda paulistanos, apenas como um meio irônico de expressão, com a atribuição que a intelectualidade que lutou pelo suposto fim do preconceito e descrita em Esses Intelectuais Pertinentes... queria fazer dos ídolos bregas, definidos como supostas vanguardas apenas porque recebiam vaias da plateia e eram rejeitados pela crítica musical.

Só que isso é um grande equívoco. O brega é retaguarda pelo simples fato de que assimila tendências musicais obsoletas e as expressa de maneira ainda mais precária do que a precariedade organizada do pop comercial estrangeiro.

Não há como dizer que isso é vanguarda, porque isso seria apenas efeito de um juízo de valor de intelectuais urbanos, que desconhecem que o brega e seus derivados - seja axé-music, "sertanejo", "forró eletrônico", "funk", arrocha, tecnobrega, pisadinha etc - se inserem num contexto em que a mídia oligárquica comanda essa suposta cultura popular glorificada pelo "bom etnocentrismo" das elites pensantes.

A retaguarda é evidente, quando se nota que, desde quando Waldick Soriano requentava velhas fórmulas seresteiras em pleno alvorecer da Bossa Nova, Odair José fazia, com anos de atraso, um rock italiano inócuo do final dos anos 1950 e, mais adiante, Chitãozinho & Xororó assimilavam os velhos sons tex-mex dos anos 1950 que deturparam a música caipira, a música brega-popularesca sempre foi uma tendência daqueles que foram os "últimos a saber".

E, estando entre os últimos a saber, os bregas nunca são nem serão vanguardistas. A vanguarda significa olhar para a frente, criar uma sonoridade mais arrojada e uma expressão musical mais visceral e, digamos para os leigos, de melhor qualidade. Significa romper com o estabelecido, coisa que os bregas nunca fizeram nem farão, porque eles mesmos são o "sistema", começaram a fazer sucesso respaldados pela mídia oligárquica e sua expressão artístico-cultural é precária e musicalmente datada.

Somente o juízo de valor marcado pelo etnocentrismo solipsista das elites intelectuais de São Paulo, Rio de Janeiro e outras capitais é que define o brega como "vanguarda", apenas por suas impressões pessoais. E se o brega é fruto do isolacionismo cultural das sociedades marcadas pelo coronelismo, os intelectuais urbanos que glorificam a bregalização cultural também são marcados pelo isolamento que têm, como elites burguesas, do qual, por sorte, só conseguiram fazer prevalecer suas narrativas pela carteirada do prestígio acadêmico e profissional.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

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