Por Alexandre Figueiredo
Atos como botar tatuagens no corpo, praticar a objetificação do corpo feminino - disfarçada pelo pretexto de um suposto feminismo popular - e até fumar cigarros são tidos como atos de "liberdade" para seus defensores. É uma estranha liberdade, por vezes autodestrutiva, por outras meramente convencional, por outras marcada por pressões sociais para parecer socialmente "diferente" aos olhos dos outros.
Numa sociedade hipermercantilizada e hipermidiatizada como o Brasil, em que o poder midiático é tão grande que a quase totalidade da população tida como formadora ou consolidadora de opinião se submete aos mecanismos midiáticos, como as redes sociais, é evidente que essa "liberdade" não seja tão livre assim. Tanto que as pessoas que aderem a essas práticas reagem às críticas com certa arrogância e falam, quase pelo piloto automático: "Eu sou livre e faço o que quiser, sou dono (a) do meu nariz".
Trata-se de um grande engano. Essas pessoas não são donas do seu nariz. Mesmo quando, em tese, decidem aparentemente pelas próprias escolhas, elas o fazem sob uma forte influência midiática, que não lhe vem como o ar que respiramos. Há uma associação com o "universo" trazido pela mídia hegemônica e que o identitarista, seja de esquerda ou centro-direita, se identifica com essa simbologia.
Sim, porque o identitarismo representa uma série de valores que nem são tão diferenciados assim. Eles correspondem ao mainstream que ignoram existir, e imaginam que, no seu quintal do establishment e do convencionalismo, possam brincar de "vanguarda" dentro dos limites simbólicos desse meio.
O mais insólito é que essas pessoas tentam renegar a influência do poder midiático. Com arrogância alegam que "ninguém manda em suas vidas" e imaginam que só elas decidem por si mesmas. Só que existe uma influência por trás, e essas pessoas se submetem a elas de maneira mais subordinada do que elas imaginam.
Essa "liberdade" que envolve a banalização das tatuagens, a obsessão por cigarro e cerveja, a objetificação enrustida do corpo feminino como um suposto ato feminista e o apreço à mediocridade artístico-cultural da música brega-popularesca fazem com que tudo isso seja, na verdade, um processo muito bem calculado pelo poder midiático e pelo mercado que lhe é associado.
OS DONOS DA LIBERDADE
Essa multidão diversificada mas comumente identitarista por meio de seu recreio hedonista e, ao mesmo tempo, consumista, na verdade consome veículos de comunicação hegemônicos, embora ignorasse essa influência. Imaginam que sconsomem esses veículos por acaso e costumam falar mal dos empresários que controlam esses meios, dentro daquele costume do "aluno que fala mal do seu mestre mas segue rigorosamente os seus ensinamentos".
Temos uma seleção de veículos midiáticos que regulam essa "liberdade": as Organizações Globo, o SBT (e seus "satélites" do imaginário popularesco, a Record, Band e Rede TV!), a Folha de São Paulo e a Jovem Pan. Mesmo os identitaristas de esquerda sofrem essa influência, de maneira maior do que podem imaginar, ainda que discordem das pautas políticas que os noticiários desses veículos transmitem em suas programações.
As Organizações Globo são a maior influência dessa "liberdade" como mercadoria midiática. É também a influência mais antiga, por ela trazer um processo de manipulação psicológica desde os tempos da ditadura militar, transmitindo valores que, embora claramente conservadores - mas de um conservadorismo funcional, diferente do defendido pelo bolsonarismo, por exemplo - , são vistos como "imparciais", "ecumênicos" e até mesmo "atemporais".
Valores ligados ao espiritualismo religioso, à nostalgia brega, à pieguice emocional trazidos pelo imaginário da Rede Globo se tornaram facilmente acolhidos por membros mais jovens das esquerdas brasileiras que, em maioria nascidos a partir de 1960, consumiram televisão durante a ditadura militar e, dali, pautaram seus valores culturais, próximos da centro-direita, em que pese a oposição que exercem apenas no âmbito político das pautas jornalísticas.
O imaginário ainda mais escancaradamente brega, quando o povo pobre é abordado de maneira caricatural, é acolhido a partir do chamado "baixo clero" televisivo, que nos anos 1970 era expresso pelas fases decadentes de duas emissoras pioneiras da TV brasileira, Tupi, depois extinta em 1980, e Record.
Junto a elas, tinha a ascensão de um apresentador de programas de auditório, Señor Abravanel, conhecido pelo pseudônimo de Sílvio Santos. Ele tornou-se empresário de mídia quando concorreu com outras empresas de comunicação para obter concessões de canais de televisão. A partir dessa empreitada, Sílvio obteve a TV Studios no Rio de Janeiro e em São Paulo, dando origem ao Sistema Brasileiro de Televisão (SBT).
Mais tarde, Band e Rede TV!, esta última surgida das "ruínas" da sofisticada Rede Manchete - em que pese a acolhida ao brega pseudo-sofisticado de Chitãozinho & Xororó, através da novela Pantanal - , também passaram a conduzir o imaginário brega mais escancarado (que, com base nas ideias de Umberto Eco, seria o camp, o grotesco explícito).
A partir dos anos 1980 e com mais intensidade nos anos 2000 e 2010, as Organizações Globo, através de veículos como a própria Rede Globo, os canais GNT e Multishow e os portais de famosos Ego (hoje extinto) e Quem Acontece, entre outros, passou a glamourizar o entretenimento popularesco, começando com a indústria de sucessos musicais de Michael Sullivan e Paulo Massadas em 1985, e na cosmética de pretensa "emepebização" dos neo-bregas dos anos 1990, como Chitãozinho & Xororó e Alexandre Pires.
A partir daí, a Globo resolveu dar um verniz "mais nobre" para as atrações popularescas que as concorrentes divulgavam "cruas" para um público de baixo poder aquisitivo. A partir daí, a chamada cultura brega-popularesca impulsionou seu processo de ampliar mercados, na tentativa de alcançar públicos considerados mais seletivos.
E a Folha de São Paulo completou o trabalho, dando suporte intelectual ao universo popularesco e inserindo sua simbologia nos clichês do identitarismo cultural. Era feita então uma combinação entre a bregalização cultural e alguns clichês acessíveis da Contracultura, como a causa LGBTQ, a liberdade sexual e alguns clichês de rebeldia visual, como a suposta transgressão das tatuagens e visuais arrojados antes associados ao hippismo, ao rastafári (reggae), ao punk ou ao heavy metal.
E o ideal de festas era transmitido pela Jovem Pan que, antes de estar associada ao fascismo pós-golpe de 2016, era considerado paradigma de "modernidade" em rádio FM. Tanto que emissoras com suposta atitude roqueira, como a Rádio Cidade (RJ) e a 89 FM (São Paulo) pautaram suas programações no modus operandi da emissora de Antônio Augusto Amaral de Carvalho Filho, o Tutinha.
Esse ideal dava o tom do conceito midiatizado de "liberdade", associada aos clichês de liberdade sexual e identitária e da mediocrização cultural como suposta liberdade criativa de ídolos popularescos e subcelebridades em geral. A Jovem Pan patenteou a gíria "balada", expressão que, a rigor, é um equivalente mais brega das raves britânicas e que virou um termo que simboliza um processo de valores simbólicos que exaltam a curtição da chamada "vida noturna" dos jovens brasileiros.
Todo esse processo moldou uma série de paradigmas da "liberdade" contemporânea, que não causam estranheza nas pessoas porque não afetam seus instintos e sensações bastante agradáveis. Dessa maneira, ficamos imaginando até que ponto pessoas aceitam serem subordinadas ao poder midiático, sem mesmo se darem conta disso e até manifestando pretensa aversão a essa mídia.
A "VELHA" TEORIA HIPODÉRMICA...
"É a velha teoria hipodérmica, dos intelectuais dos anos 1940...", diriam os intelectuais que observassem as críticas aos fenômenos popularescos e ao hedonismo identitarista vigentes no grande circo midiático atual.
Leia-se teoria hipodérmica a tese em que a mídia exerce um processo mecanicista de manipulação do público. Essa teoria pressupunha que o processo comunicativo era predominantemente unilateral, do emissor, o meio de comunicação, ao receptor, o público, sem saber de suas vontades e desejos.
Evidentemente, o público que consome o entretenimento e as atrações jornalísticas dos meios de comunicação possui vontades e desejos. Mas o que se observa é que o processo de manipulação não é anulado. Também não há vontades e desejos puros, surgidos através do ar que se respira, porque também existe uma logística de persuasão e exploração psicológica do inconsciente do público-alvo.
A "liberdade" que muitos famosos e os não-famosos considerados formadores de opinião nas redes sociais expressam não é tão livre quanto se imagina, porque até esse "modo livre de ver a vida" é, na verdade, uma mercadoria difundida pela mídia, que mostra um "universo" de valores que parecem naturais, mas envolvem condicionamentos calculados por publicitários, psicólogos e executivos da mídia hegemônica.
Trata-se de um cenário em que o poder midiático é tão grande que as pessoas não percebem isso. É como se, numa ficção de fantasia, pessoas de tamanho minúsculo estivessem sob as pernas de um gigante sem se dar conta de sua existência.
Até que ponto essas pessoas são "livres"? Indaga-se omo elas podem falar palavras e jargões como a gíria "balada" que, em vez de representar um sentimento de identidade grupal ou de modernidade cultural, foram difundidas a partir de um esquema de poder midiático, associado a um mercado de casas noturnas, DJs e todo um combo de festas e eventos noturnos de elites empresariais influentes no Brasil.
Da mesma forma, como um considerável número de pessoas pode se tatuar, sob a alegação de que é "moderno e diferente"? Todo mundo virou alternativo? Não, evidentemente. O que há é que o ato de tatuar o corpo virou um item insólito, mais certeiro, da ditadura estética do mercado de moda, que exerce pressão nas pessoas com a obsessão de querer parecer diferente de todo mundo.
O mais irônico é que, neste caso das tatuagens, é tanta gente aderindo que a qualidade de diferente acaba recaindo para quem não é tatuado. E, no caso das mulheres, que no contexto identitário reclamam tanto de intervenções masculinas, elas acham "livres" serem tatuadas por outros homens, que não raro dão sugestões e até decidem que desenho irão colocar nos corpos de suas freguesas.
A mediocridade artístico-cultural que envolve a música popularesca e o saturado mercado de subcelebridades também era uma tática do mercado de trazer "pessoas comuns" para o mundo da fama, com a blindagem de intelectuais influentes, processo já descrito no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes.... O suposto combate ao preconceito era um pretexto usado para que essa mediocrização fosse aceita pela chamada "alta cultura".
E esse "mundo livre", parafraseando o nome do grupo de mangue beat Mundo Livre S/A, é um mundo mercadológico onde a "liberdade" está mais para livre mercado e livre consumo, atendendo a interesses dos mais diversos empresários do ramo de entretenimento, sejam os agenciadores de famosos, os executivos de mídia e os empresários de casas noturnas. Se as pessoas "livres" não gostam desses empreendedores, elas, no entanto, acabam atendendo às suas expectativas e garantindo seu lucro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 5.ed. Tradução de Pérola de Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 1993.
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
WOLF, Mauro. Teorias da Comunicação. Tradução Maria Jorge Pilar de Figueiredo. 2. Ed. Lisboa, Editorial Presença, 1992.
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