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O CULTURALISMO CONSERVADOR QUE AS ESQUERDAS NÃO ENXERGAM

O CULTURALISMO CONSERVADOR SE VALE DO DISCURSO "CONTRA A CORRUPÇÃO", MAS ELE NÃO SE LIMITA SOMENTE A ISSO.

Por Alexandre Figueiredo

O culturalismo conservador descrito por Jessé Souza possui limites conceituais que não são falhos, porque o sociólogo que os analisa têm seus horizontes de abordagem que lhes são próprios e oportunos, conforme suas formações no âmbito do Conhecimento. Trata-se de narrativas que fizeram suas escolhas para, assim, trazer análises peculiares que trazem uma valiosa contribuição para nosso debate.

Baseado no mito do "brasileiro cordial" e fundamentado em questionamentos das obras de Sérgio Buarque de Holanda e Raimundo Faoro, dos dos principais ideólogos do culturalismo conservador vira-lata, Jessé Souza não iria falar de "bailes funk" nem de ídolos cafonas exaltando o "Brasil Grande", por estabelecer critérios que lhe são próprios, dentro do caminho analítico que escolheu.

Isso não significa que estacionemos no campo analítico de Jessé e nos satisfaçamos com o que sua abordagem apresentou. E isso vem à tona quando, no âmbito religioso, temos o perigo que representa o Espiritismo que é feito no Brasil e que representa um culturalismo conservador ainda mais traiçoeiro do que as chamadas religiões "evangélicas pentecostais", apesar de sua narrativa parecer uma "alternativa viável" na construção da religiosidade e do pacifismo em momentos de convulsão social de hoje.

Eu larguei o Espiritismo brasileiro em 2012, desiludido com uma série de erros e pela forma com que a religião interferiu em minha vida, que no âmbito pessoal sofreu infortúnios dignos de obra de Franz Kafka e que, pelo caráter particular dessas ocorrências, não me cabe detalhar, mas é como se eu tivesse, segundo a metáfora bíblica, "pedido pão e recebido serpentes". Uma pequena página explica alguns motivos que posso mencionar sobre por que larguei a religião "espírita".

O Espiritismo brasileiro tem a triste façanha de ser uma religião da qual traiu o Espiritismo francês, original. No lugar das ideias lógicas de Allan Kardec, o precursor da Doutrina Espírita, o que se conhece como Espiritismo aqui, em que pese as bajulações e todos os artifícios feitos em prol do educador francês, rompeu com a doutrina original em toda sua essência. 

Até mesmo a dita Ciência Espírtia, no Brasil, reduziu-se a um eufemismo a blindar um engodo doutrinário que combina uma repaginação do Catolicismo medieval - introduzido no Brasil durante o período colonial - , combinada com uma falsa paranormalidade que está mais próxima do Ocultismo e das pseudo-ciências místicas e esotéricas.

Neste sentido, a sociedade brasileira se limitou a se contentar com os questionamentos, hoje vistos como bastante moderados, trazidos pelo jornalista José Herculano Pires, sobrinho do cronista caipira Cornélio Pires, sobre o que ele definiu como "religião de papalvos". 

Na prática, os questionamentos se limitavam apenas ao desrespeito ao texto original de Allan Kardec, mas manteve complacência com outras atividades deturpadoras, sobretudo quanto à suposta paranormalidade de um pretenso médium de Minas Gerais, até hoje tido como "o maior e o mais respeitado (sic) do Brasil", mas com um histórico de graves denúncias de atos fraudulentos e produção de literatura fake.

Há um sério vício dos brasileiros se contentarem com questionamentos que seguem um caminho, mas, por motivos diversos - no caso de Jessé Souza, por suas escolhas pessoais, o que são direitos seus - , não avançam por si só, exigindo novas análises que ampliassem o horizonte contestatório. Esse contentamento acaba protegendo vícios estabelecidos mas pouco perceptíveis pelo público comum.

O próprio Espiritismo brasileiro personifica um culturalismo conservador que se torna explícito, apesar de dificilmente percebido por maior parte dos brasileiros, porque se baseia em conceitos moralistas e religiosos que remetem à Teologia do Sofrimento (corrente radical do Catolicismo da Idade Média) e da meritocracia.

Existe, mesmo entre as esquerdas, a ideia errada de que a Teologia do Sofrimento dialoga com a Teologia da Libertação e que a corrente medieval se aplicaria apenas em ações como brigas entre vizinhos ou entre motoristas num acidente de trânsito, como se essa vertente católica falasse somente de pessoas se calarem quando alguém pisa no seu calo.

A Teologia do Sofrimento encontra sua gravidade e seu obscurantismo conservador quando seu apelo se torna virtualmente direcionado à tortura no período ditatorial. Imagine aplicar essa teologia quando se é um preso político, colocado aos piores instrumentos de tortura, diante de um sádico coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra dando socos e humilhando sua vítima da pior maneira. O silêncio e o sentimento de gratidão da vítima para seu algoz adiantariam para sua bonança?

"ANTI-ECONOMICISMO" ECONOMICISTA

As forças progressistas brasileiras cometem o erro crasso de acolherem tendências conservadoras, no âmbito da cultura e da religiosidade, apenas por não apresentar um discurso raivoso e por expressar uma simbologia supostamente associada a alguma ideia de progresso, democracia, paz e interação pessoal. Erram feio ao sucumbir a essa crença ilusória, mas há um motivo compreensível para isso.

Afinal, as esquerdas brasileiras de hoje são muito diferentes das de até 40 anos atrás. Nossos esquerdistas atuais são pessoas em maioria de 60 anos de idade para menos, que tiveram uma educação midiática no período ditatorial, acolhendo as ilusões culturalistas trazidas pela mídia hegemônica, que não tinha um contraponto forte como ocorre, hoje, com a mídia alternativa.

Daí que mesmo as esquerdas adotavam um culturalismo trazido por veículos como a Rede Globo, a Folha de São Paulo ou mesmo o Programa Sílvio Santos, cujo apresentador e, mais tarde, dono do Sistema Brasileiro de Televisão, tornou-se, depois, apoiador de Michel Temer e Jair Bolsonaro.

E assim como Jessé Souza descreve o erro das esquerdas caírem no conto da demonização do Estado e da santificação do mercado, podemos ir além e verificar o erro que as esquerdas tiveram ao cair no canto sedutor de uma elite de intelectuais que vendia a "cultura" brega-popularesca como "causa libertária" sob a desculpa do "fim do preconceito", que eu detalho no meu livro Esses Intelectuais Pertinentes..., analisando caso a caso entre os principais intelectuais ideólogos dessa "causa nobre".

As esquerdas médias - nome que eu dou ao mainstream dos formadores de opinião progressistas - imaginam que o culturalismo conservador, apesar de Jessé Souza enfatizar que não se deve ver o tema sob o viés economicista, se limita aos aspectos pontuais de caráter sociológico e, por ironia, economicistas.

Para o aparente senso comum nas esquerdas médias, "culturalismo conservador" é entendido tão somente pelo mito da "corrupção estatal" (visão economicista), pela forma com que pais educam seus filhos na classe média e na "ralé" (visão sociológica) ou pelas relações cotidianas entre patrões e empregados domesticos (visões sociológica e economicista).

Fica a impressão que, se na classe média uma mãe cantar, como cantiga de ninar, a música "Eu Não Sou Cachorro Não", de Waldick Soriano, para seu bebê de pouco tempo de vida, o culturalismo conservador "desaparece" e entra no lugar um "ato de coragem libertário e revolucionário", o que é uma tolice tão grande quanto a que enfatiza o sociólogo Jessé Souza em relação à intelectualidade vira-lata brasileira.

Não seria, aliás, um "vira-latismo" o que pregavam nomes como Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna, só para citar a "santíssima trindade" de intelectuais pró-brega canonizados por seus pares na quase totalidade de páginas que evocam seus nomes na Internet?

Não seria a defesa da bregalização cultural, mesmo sob o choroso apelo do "combate ao preconceito", uma demonstração do complexo de vira-lata, da qual a simples aceitação, pela dita "alta cultura", dos fenômenos popularescos, não resolve a degradação sócio-cultural e econômica nem a desigualdade de classes que assola nosso país?

Os intelectuais pró-brega, à sua maneira, também evocam o mito do "cidadão cordial". Seu racismo estrutural apela para que aceitemos o povo pobre "da forma como eles são", uma desculpa que se refere a uma construção da imagem de pobreza popular que a sociedade do espetáculo à brasileira (Rede Globo, Folha, SBT, Caras) construiu de 1970 para cá. E isso inclui uma negritude caricatural do "negão tarado" estereotipado pelos grupos de "pagodão" pós-Tchan da Bahia, só para dar um exemplo.

O mascaramento da luta de classes também acontece no discurso pró-brega, tanto quanto o do culturalismo de âmbito "estritamente político, sociológico e econômico". É só perceber, nos textos em prol do "funk", do tecnobrega, do "sertanejo" e outros ritmos "populares demais", que "desaparece" a ideia do poder midiático, como se os nossos sertões e subúrbios, a "nossa periferia", não sofressem a influência do coronelismo midiático regional, dominado por oligarquias locais.

A narrativa se limita apenas a mencionar um idealizado "coordenador de rádio", visto como um suposto produtor cultural, e empresários do entretenimento supostamente "ainda pobres", gerando renda "com seu próprio esforço". Ignora, essa narrativa, que esses agentes do entretenimento são capatazes de um sistema de domesticação cultural das classes populares, anestesiando-a através de uma pseudo-cultura comercial, para evitar as revoltas populares que poriam risco ao poder coronelista local.

O culturalismo conservador do discurso pró-brega, trazendo ideias ilusórias como "cultura das periferias", "grito de dor do povo pobre", "autossuficiência das periferias", revela seu caráter gritante ao glamourizar práticas que soam "males necessários" para o povo pobre, que, sem arrumar outra alternativa, têm que viver em casas precárias nas favelas, trabalhar no comércio clandestino e na prostituição, sofrendo riscos e ameaças, potencialmente fatais, que a narrativa pró-brega deixa passar em branco, em seu cínico discurso.

Até mesmo a "superioridade intelectual" dos EUA, com seu "protestantismo impessoal", é visto, pelo discurso pró-brega de Araújo, Sanches, Vianna e companhia como a "salvação" e o "símbolo de modernidade" da suposta cultura das classes populares, a brega-popularesca. A ideia de uma "modernidade pop", atribuída até mesmo a personagens pitorescos de origem pobre que aparecem em programas de auditório da TV, revela esse culturalismo conservador.

As esquerdas imaginam que a ideologia pró-brega e o religiosismo "espírita" que repagina o Catolicismo medieval - ainda que com uma narrativa "não-raivosa" e falsamente progressista - estão longe de representar o culturalismo conservador. Se enganam essas esquerdas, porque é justamente aí que o culturalismo conservador se expressa na sua prática mais explícita, complementando apenas os aspectos políticos, sociológicos e econômicos já conhecidos.

Desse modo, foi justamente o discurso da bregalização que se tornou crucial para desviar o povo pobre das mobilizações sociais, já que eles foram jogados para o entretenimento popularesco - que o discurso pró-brega atribuía como suposto "ativismo social" - sob a desculpa da "provocação identitária". Isso não somente não ameaçava o poder capitalista que patrocina esses eventos como, sem o povo lutando por melhorias, as próprias esquerdas se isolaram e o caminho golpista foi aberto em 2016.

FONTES: Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica, Carta Capital, Caros Amigos, Revista Fórum.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

SOUZA, Jessé. A Elite do Atraso: Da Escravidão à Lava-Jato. Rio de Janeiro, Leya, 2017.

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