ANITTA - CANTORA INSPIRADA NOS PADRÕES DO POP ESTADUNIDENSE DOS ANOS 1990.
Por Alexandre Figueiredo
O Brasil vive um grande complexo de vira-lata há décadas, com maior intensidade desde que uma missão cultural desembarcou no país em 1942, a serviço da Política da Boa Vizinhança do projeto New Deal do então presidente estadunidense Franklin Roosevelt. Era uma maneira de evitar que o Brasil se tornasse aliado do nazi-fascismo, durante a Segunda Guerra Mundial, selando uma aliança que beneficia o país norte-americano e que continua valendo até hoje, com maior vantagem para os EUA.
Antes disso, apenas as elites se comprometeram a adotar o barbarismo cultural através de influências importadas da Grã-Bretanha e da França e, a partir da chegada de outros povos para colonizar o Brasil, substituindo o trabalho escravo pelo trabalho assalariado, os italianos passaram também a se destacar nas influências introduzidas em nosso país.
O complexo de vira-lata, termo popularizado pelo dramaturgo e jornalista esportivo Nelson Rodrigues a partir da derrota da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1950, realizada no próprio Brasil, corresponde ao comportamento colonizado e defasado que a maioria dos brasileiros, resignados com sua posição subalterna e secundária em relação ao mundo, sente, ainda que de maneira disfarçada.
Para piorar, isso inspira a síndrome do "vinho novo em odre velho" (termo baseado em parábolas bíblicas do Novo Testamento), no qual toda novidade só é acolhida no Brasil sob a condição de se adaptar a uma forma velha que deveria estar superada e obsoleta. Na Jovem Guarda, a novidade popularizada pelos Beatles foi freada pelo romantismo simbolizado pelo pop italiano também de muito sucesso na década de 1960.
No entanto, o complexo de vira-lata se tornou mais intenso a partir da segunda metade dos anos 1960, quando a assimilação do rock'n'roll pela Jovem Guarda, além de ter sido tardia - em 1964, ainda remetia ao rock comportado dos EUA de 1958 - , era bastante limitada em ousadia. Raramente havia contemporaneidade na assimilação de tendências de fora e a chamada "antropofagia cultural" que intelectuais badalados tanto alardearam existir praticamente é inexistente.
Chama-se de "antropofagia cultural" o ato de assimilar, de maneira crítica, influências culturais estrangeiras, com o agente cultural local intervindo na cultura forasteira de forma a incluir elementos da cultura local ou, então, adotar a cultura estrangeira sob uma perspectiva genuinamente local.
A antropofagia cultural foi um conceito lançado por Oswald de Andrade, escritor modernista, em 1928, através do seu Manifesto Antropofágico. No entanto, as tão alardeadas "aulas práticas" que os intelectuais "bacanas" atribuem aos fenômenos popularescos simplesmente nunca existiram, até porque, se isso fosse, Oswald de Andrade seria um dos escritores de maior venda e maior fama em todo o Brasil.
CULTURA HORIZONTAL E VERTICAL
O que acontece nos fenômenos popularescos ou em toda a chamada "cultura de massa" brasileira, na verdade, é uma assimilação de caráter vertical, "de cima para baixo", através do que a mídia e o mercado determinam sobre o que será culturalmente em voga no Brasil durante determinado período.
Em outras palavras, o que ocorre é que mídia e mercado lançam referenciais culturais estrangeiros a serem assimilados pelo público, mas não da forma crítica e criativa da antropofagia cultural, que é um processo horizontal. A "cultura" popularesca, embora pudesse expressar aspectos locais, ela não se dá de maneira crítica nem criativa porque, apesar da suposta espontaneidade e interação popular, ela atende a expectativas que o poder midiático e mercadológico desejavam ocorrer.
A assimilação tem caráter imitador, geralmente tardio. A bregalização cultural, além de expressar uma reprodução do que fez sucesso nos cenários pop dos EUA, reproduz de maneira tardia, geralmente após os modismos terem se desgastado.
Foi o caso dos primeiros ídolos da música cafona. Waldick Soriano, por exemplo, fazia boleros numa época em que eles saíram de moda, o começo dos anos 1960. Até mesmo o disco de 1964 da cantora estadunidense Eydie Gormé com o Trio Los Panchos não justifica atribuir contemporaneidade da música de Waldick, que já soava velha e descontextualizada, diferente do que a cantora havia proposto na sua opção pessoal de reciclar os boleros da cantora e do grupo mexicano.
Do mesmo modo, também Odair José soa atrasado e descontextualizado, fazendo um forte ranço do rock italiano do começo dos anos 1960, já extremamente comportado e desprovido da rebeldia e da visceralidade original do gênero. Embora a natural complacência da sociedade tente vender Odair José como "vanguarda", adotando nele um aparato "psicodélico" e "contestador", nota-se que, prestando muita atenção na sua sonoridade, ele sempre soou datado e inócuo em relação à imagem que se tem do cantor hoje.
Ao longo dos tempos, os fenômenos popularescos, sobretudo musicais, mas também comportamentais, surgem no Brasil com uma defasagem significativa de cerca de 10, 15 anos em relação às tendências estrangeiras que inspiraram tais movimentos.
O chamado "sertanejo", incluindo seu derivado mais recente e curtido pelo público "milenial", o "sertanejo universitário", há muito deixou o legado da canção caipira original - que apenas veteranos como Chitãozinho & Xororó, Daniel e Zezé di Camargo & Luciano se apropriam de maneira tendenciosa - e abraçou a influência escancarada da country music dos EUA, que remete a uma realidade muito diferente do interiorano brasileiro. Difícil apelar pela ajuda de Oswald de Andrade para explicar o sucesso dos "caubóis" brasileiros.
Não há como comparar o "moderno sertanejo brasileiro" com as inovações que o Nashville Sound realizou nos anos 1950, quando a música country assimilou elementos do rhythm and blues, jazz, easy listening (espécie de pop erudito e orquestrado) e do rock'n'roll.
As "modernizações" vieram com mais de 20 anos de atraso e se limitaram a absorver elementos de bolero e do country tradicional, além dos mariachis mexicanos, visando interesses comerciais e fazendo com que o que entendíamos como música caipira se rebaixasse a uma espécie de sub-derivado da canção cafona dos anos 1960 e 1970.
COMERCIALISMO ENRUSTIDO
No Brasil, o "funk" tornou-se um paradigma dessa visão dominante de um comercialismo enrustido, além do próprio caráter de imitação do miami bass estrangeiro ser mascarado por um discurso intelectual que produziu um pretenso consenso.
Nesse discurso, o "funk" tornou-se um paradigma de uma visão ideológica de suposta brasilidade urbana, associada a uma visão apologética das favelas, que deixam de serem vistas como um problema habitacional para se tornarem "paraísos" simbólicos, dentro de uma abordagem "bondosamente" elitista, apesar de todo o apelo para o dito "combate ao preconceito".
As comparações do "funk" com o samba, sobretudo na tese vitimista que atribui a rejeição do "funk" aos mesmos motivos que o samba sofreu há 100 anos - uma tese extremamente discutível, tamanha a diferença de contexto social entre os dois casos - , foram insistentes até pouco tempo atrás, mas tornam-se um equívoco na medida em que os dois ritmos são comparados nas suas formas de expressão.
O samba se destacou pela estrutura instrumental forte, enfatizando o ritmo, e surgiu de maneira comunitária através do lazer dos negros escravos. Diferente disso, o "funk", nome dado ao "batidão" e do "pancadão" que toma conta da mídia, tinha um rigor estético e sonoro inflexível, com base na estrutura austera do DJ e do MC, em performances musicais que não passavam de karaokês.
Até mesmo a "evolução musical" do "funk" era calculada. Era uma mesma batida para todos os intérpretes, durante uma certa temporada. Depois dele, criava-se uma outra batida, também para todos os intérpretes. O calculismo sonoro dos DJs de "funk" destoava da riqueza e variedade rítmica do samba original, que não tardou a incluir instrumentos acústicos e de sopro, com variações musicais que iam do maracatu ao chorinho.
Além disso, o "funk", o "miami bass à brasileira", sempre imitava a estética de sua matriz na Flórida, EUA, por mais que se simulasse uma "brasilidade carioca", meticulosamente planejada pelo mercado e pela mídia e endossado pelo discurso intelectual pró-brega, sempre guiado pelo pretexto vitimista do "combate ao preconceito".
Com o "funk ostentação", o rigor estético do "funk" passou a imitar também o gangsta rap dos EUA, quando os MCs paulistanos, de onde surgiu esse derivado, imitavam os rappers na pose de malvados, na exibição de medalhas e colares espalhafatosos e no culto aos bens de consumo, como tênis e carros importados.
Um confuso discurso "anti-capitalismo" foi trabalhado pela blindagem intelectual aos funqueiros, como se o consumismo do "funk ostentação" fosse resultado das políticas sociais do Partido dos Trabalhadores, que comandava o Governo Federal em 2014, uma tese que não possui lógica alguma, mas que repercutiu pelo apelo emocional do discurso "em favor da periferia".
Não se conseguia explicar por que os funqueiros, ao mesmo tempo, aderiram aos bens de consumo mais supérfluos e estavam associados a uma retórica "anti-capitalista". Mas esse discurso foi dado pela mesma intelectualidade que, tentando atribuir um caráter "subversivo" ao "funk", atribuiu aos aspectos negativos do gênero, como a precariedade sonora, a glamourização da pobreza e à apologia ao machismo, como "reflexos da sociedade em que vivemos", desculpa que, por acidente, revela que o "funk" nunca teve o interesse em romper com esses "valores sociais".
Recentemente, a obsessão imitadora da cultura brasileira está na ascensão de um pop de dois matizes, um claramente popularesco, associado ao "sertanejo universitário", o "funk" e o "pagode romântico", com nomes como Marília Mendonça, Gusttavo Lima, MC Pocah e Ferrugem (não confundir com o antigo astro mirim dos anos 1970) e um pop asséptico de nomes como Anitta (com um hibridismo com o "funk"), Luíza Sonza, Vitão e Vítor Kley. Junto a eles, ainda se tem uma ala mais inofensiva da MPB, com Thiago Iorc, Anavitória e Melim.
Todos eles estão associados a uma estética visual, um padrão comportamental e uma roupagem sonora que remetem ao pop juvenil dos anos 1990, introduzido com forte defasagem no Brasil, mas que, por coincidência, consegue dialogar com o pop comercial de ídolos contemporâneos apadrinhados pelo poderoso empresário, produtor e compositor sueco, radicado nos EUA, Max Martin.
Isso se deve porque, por coincidência, também se estagnaram os padrões de pop estadunidense seguidos também no Canadá, Austrália e Grã-Bretanha, além de franquias adotadas no Japão (j-pop) e Coreia do Sul (k-pop). Todo esse cenário pop comandado pelo "rei do pop" Max Martin remete a elementos musicais, visuais e comportamentais que permaneceram os mesmos dos anos 1990, através de nomes como Britney Spears, Backstreet Boys, N'Sync, Destiny's Child, Jennifer Lopez e os auges das carreiras de Madonna e Michael Jackson.
Isso dá a impressão de que o chamado "pop brasileiro" encontrou a sua contemporaneidade, depois de tentativas de ídolos brega-popularescos do passado em correrem atrás de modismos obsoletos, seguindo, na música, o modelo "desenvolvimentista" de Roberto Campos nos tempos da ditadura, através de uso de matéria-prima fora de uso.
E isso se reforça num contexto em que a mentalidade colonizada dos brasileiros se reciclou com o golpe político de 2016, que reverteu boa parte dos relativos progressos históricos alcançados no Brasil e que se tornou o efeito inesperado de toda a campanha do "combate ao preconceito" da bregalização, que fez desmobilizar as classes populares. Maiores detalhes em meu livro Esses Intelectuais Pertinentes....
E imaginar que o discurso intelectual pró-brega vendia a música brega-popularesca como "nova" e "vanguardista", um sinal de que o Brasil gosta de sentir o complexo de vira-lata, mas reivindica um pedigrée para tal condição.
FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, Revista Fórum, Blogue Mingau de Aço.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.
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