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A HIPOCRISIA DAS ELITES INTELECTUAIS QUANTO À CRISE CULTURAL BRASILEIRA

  

Por Alexandre Figueiredo

O livro que escrevi, Esses Intelectuais Pertinentes, disponível na Amazon, explica e exemplifica a campanha do suposto "combate ao preconceito" de uma elite de intelectuais tidos como "especializados" em cultura popular. A campanha durou cerca de 15 anos, pelo menos quando sua atuação foi intensa e constante, e seu desfecho influiu no golpe político de 2016.

Tomando como "verdadeira cultura popular" a chamada "cultura de massa" dos fenômenos popularescos, não somente musicais - embora prioritariamente nessa condição - , o dito "combate ao preconceito", todavia, abordava formas preconceituosas de suposta expressão popular, que glamourizava a pobreza a ignorância e, entre outros aspectos, tratava os grupos identitários (como negros, índios e a comunidade LGBTQ) de forma "positiva", porém caricatural.

Numa época em que 100 mil brasileiros morreram de Covid-19 e, independente da doença, tivemos óbitos irreparáveis em nossa cultura por diversas causas - como o cantor Moraes Moreira, o letrista Aldir Blanc, o músico Sérgio Ricardo e o professor e ativista cultural baiano Jorge Portugal - , a bregalização cultural mostrou, por outro lado, seus estragos diversos.

A queda de máscara dos ídolos "sertanejos", que se revelaram afinados com o bolsonarismo, derrubou a aparente preocupação dos intelectuais pró-brega de uma suposta existência de algum "progressismo libertário" desses ídolos.

Com antecedência, eu já escrevi, em vários textos de 2009-2011, que o "sertanejo universitário" era uma expressão musical patrocinada pelos grandes empresários do agronegócio, a moderna oligarquia rural brasileira. Muita gente fez vista grossa do assunto, só reconhecendo a realidade de uns dois anos para cá.

O "funk" ainda demora a ser reconhecido como um subproduto do poder midiático no Rio de Janeiro, tendo sua ascensão patrocinada pela Rede Globo, primeiro em parcerias com a Som Livre, segundo através da propaganda de famosos como Xuxa Meneghel (então estrela da emissora) e Luciano Huck, ambos "embaixadores do funk" por iniciativa de Rômulo Costa, empresário e DJ da Furacão 2000.

Carro-chefe do "combate ao preconceito", o "funk", que apresenta aspectos como o estranho rigor estético e sonoro, durante anos baseado na inflexível estrutura do DJ e MC - que impedia coisas como inserir instrumentos musicais reais, sobretudo por parte do MC, ou haver intérpretes ao mesmo tempo DJ e MC, como se observa na música em geral, com cantores-instrumentistas - , e sua simbologia trata a pobreza de maneira espetacularizada e estereotipada.

Esse "combate ao preconceito" pegou as forças progressistas desprevenidas. Afinal, num momento em que o Partido dos Trabalhadores estava no poder, a oposição era reconhecida somente através de um discurso raivoso, considerado "hidrófobo", e a ficha não caiu diante de um discurso mais traiçoeiro, que imitava a retórica triunfalista das esquerdas e, o que é mais grave, era transmitido, de forma direta ou indireta, na própria mídia esquerdista.

Eram valores que, nem de longe, se referiam à busca da dignidade das classes populares. Ou seja, havia apenas, por parte dos intelectuais pró-brega, não só para o "funk" mas também para outros estilos e fenômenos popularescos, o apelo para o reconhecimento das coisas "tal como são", não só no âmbito musical mas também comportamental.

Alguns exemplos: é a musa siliconada cuja única coisa que sabe fazer é "sensualizar-se". Ou então é o mendigo idoso, embriagado e banguela, que balbucia coisas andando pelas ruas. Ou o cantor medíocre que, com melodias precárias e letras confusas de amor exacerbado, começa a fazer sucesso nas rádios. A exposição dos aspectos negativos das classes populares foi o tom dessa intelectualidade que exibiu o povo pobre no que havia de pior, mas classificando essa piora como algo "positivo" e "inerente" a essa classe social.

E aí foi esse o problema. A aceitação, como qualidades "positivas", do ato de viver em favelas, trabalhar na prostituição, no subemprego da venda de produtos pirateados, de ter escolaridade precária - o que colocava os intelectuais pró-brega em rota de colisão com Paulo Freire, no que se diz à preocupação com a educação do povo pobre - , colocava o povo pobre, em sua pior situação, sob a comtemplação um tanto hipócrita e paternalista das elites culturais brasileiras.

Daí que, durante anos, o que se viu, nesse "combate ao preconceito", foi a reação de outras elites, abertamente conservadoras, que passaram a defender as reconquistas dos privilégios dos ricos e da classe média solidária. Daí o golpe político de 2016, que o livro descreve mencionando vários intelectuais pró-brega e suas respectivas campanhas.

Hoje, com o golpe político consolidado, o Ministério da Cultura extinto e as restrições para investimentos na cultura cada vez mais limitadoras, os intelectuais pró-brega se calam, como se eles não tivessem feito a campanha que fizeram. Eles agora se empenham na verdadeira cultura popular e negam que tenham defendido a bregalização e a precarização da cultura popular. Mas, durante muito tempo, foi justamente isso que eles fizeram, com uma insistência muito grande.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

FIGUEIREDO, Alexandre. Esses Intelectuais Pertinentes... Como a Retórica do "Combate ao Preconceito" da Bregalização Contribuiu para o Golpe Político de 2016. Niterói, Independente, sob publicação virtual no portal Amazon, 2020.

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