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CORONAVÍRUS IRÁ SEPULTAR MITO DA "FAVELA LINDA" DA INTELECTUALIDADE PRÓ-BREGA


Por Alexandre Figueiredo

2002-2014. Era uma vez uma geração de intelectuais de classe média - conforme os padrões sociológicos trazidos por Jessé Souza - que, se julgando "solidários" às classes populares, faziam exaltação a atividades e situações que os pobres enfrentavam a contragosto, como o comércio clandestino e a prostituição.

Era a época da campanha de suposto combate ao preconceito. A "luta contra o preconceito" foi um discurso montado pelas elites intelectuais da época, principalmente entre antropólogos, jornalistas culturais e cineastas de documentários, para forçar a aceitação de fenômenos popularescos, visando ampliação de mercados, e também a narrativa etnocêntrica em torno do povo pobre, associado a qualidades negativas que envolvem a ignorância, a mediocridade e a adesão a valores atrasados.

Questionamentos nesse sentido estão no meu livro, Esses Intelectuais Pertinentes.... A ideia de abordar uma imagem idealizada da pobreza e apenas criar uma narrativa "positiva" - supostamente "sem preconceitos" - para seus defeitos, de forma que até um mendigo embriagado rebolando de maneira grosseira na rua, de madrugada, seja encarado como "expressão da modernidade pop nas periferias".

Todo esse discurso, pasmem, foi produzido inicialmente na mídia hegemônica, também denominada, de maneira um tanto depreciativa, como "mídia venal". Mas não tardou a fazer seu proselitismo na mídia progressista que, por boa-fé, acreditou que esse discurso "contra o preconceito" prometia uma valorização positiva que estimulasse a melhoria da imagem do povo pobre na sociedade brasileira em geral.

Mas esse discurso falhou completamente e só abriu espaço para o golpe político de 2016, uma vez que a narrativa de que o povo pobre, apenas se divertindo no entretenimento popularesco - difundido por uma mídia que se autoproclama "popular", mas é controlada por grupos oligárquicos nacionais ou regionais - , estaria fazendo "ativismo sócio-político", o desviou das verdadeiras manifestações populares.

O que o discurso "contra o preconceito" da campanha pela bregalização cultural mostrou não foi a melhoria do povo pobre, mas antes a retórica do "flautista de Hamelin" que tirou o povo da mobilização social e deixou-o no "recreio", como se fossem crianças imaturas. Além do mais, isso isolou as forças progressistas, que perderam sua base popular, e ficaram debatendo apenas entre si, dentro de sua "bolha".

Por outro lado, os preconceitos, que se supunham derrotados pelo discurso intelectual pró-brega - que nada fez senão empurrar o mercado popularesco para públicos de maior poder aquisitivo ou instrução escolar - , só aumentaram, sobretudo quando o chamado "mau gosto popular" tornou-se alvo de chacotas de radicais de extrema-direita, que foram empoderados nas redes sociais.

O caminho do golpe foi aberto e nem o "cavalo de Troia" do "baile funk contra o impeachment" ocorrido em Copacabana no dia 17 de abril de 2016, comandado pelo dono da Furacão 2000, Rômulo Costa - filiado ao PSL, padrinho de Luciano Huck como "embaixador do funk" e aliado de Luiz Erlanger, jornalista ex-Globo ligado a Michel Temer, e Eduardo Lopes, senador do Republicanos que votou contra Dilma Rousseff - , representou algo favorável aos progressistas.

Muito pelo contrário. Como uma "raposa" organizando a festa das galinhas, Rômulo Costa só fez criar o canto de cisne das forças progressistas, e o tom de festa que o "baile funk" representou para as esquerdas acabou gerando o efeito do anestesiamento do protesto popular, permitindo para que os deputados golpistas tivessem o sossego necessário para votarem o processo de expulsão de Dilma Rousseff do cargo presidencial.

Com o povo "brincando" o "funk", o tecnobrega, o "forró eletrônico", o sertanejo etc, não havia meios de chamar as classes populares para as mobilizações sociais autênticas e sérias, que envolvem pautas relacionadas ao trabalho e à sobrevivência humanas, como a reforma agrária e as garantias dos direitos trabalhistas. Até a causa LGBTQ, usada como isca pelo divertimento popularesco, não o fez tornar-se mais relevante como ativismo.

FAVELAS VULNERÁVEIS

Enquanto intelectuais influentes e prestigiados faziam esse discurso no "olho" da mídia progressista, o povo pobre era deixado de lado. É o lado sombrio do "combate ao preconceito", a visão preconceituosa de que o povo pobre está "feliz" em sua condição, bastando apenas ter dinheiro, prestígio social e realizações pragmáticas, como luz e água encanada, causas defendidas pelos intelectuais pró-brega mais para aumentar o consumo do que permitir os direitos sociais dos pobres.

O povo pobre acabou permanecendo nas favelas, e estas é que viraram "paisagens de consumo", alvo dos "safáris humanos" das elites que, com um certo pasmo etnocêntrico, viam nos favelados figuras "exóticas", como se fossem tribos primitivas num contexto pós-moderno.

Também houve a gradual revelação do reacionarismo de jovens internautas, que já estava sendo exposto apenas em âmbitos aparentemente menores - como cultura e mobilidade urbana - , de 2009 para cá, quando demonstraram preconceitos elitistas e moralistas dos mais retrógrados.

O que muitos ignoraram é que ninguém fazia reacionarismo digital ouvindo músicas relevantes de Tom Jobim, Chico Buarque e Milton Nascimento, mas com a música popularesca, até mesmo o "funk", que só eram "progressistas" na imaginação fértil da intelligentzia brasileira.

E é isso que derrubou aquele discurso do "combate ao preconceito", eu que pese o prestígio dos intelectuais envolvidos, aparentemente inabalável, embora a opinião pública na Internet fizesse duras críticas a essa elite intelecual, que na prática apenas foi deixada "de molho" na sua exposição de ideias.

Enquanto isso, o golpe político de 2016 foi reivindicado sob o vácuo das mobilizações populares, pois o espaço acabou servindo para as elites irem para as ruas pelo sentido ideológico oposto, reivindicando a recuperação de seus privilégios.

Junto com o anestesiamento das esquerdas com o "baile funk" de Copacabana, o golpe político de 2016 se consagrou em diversas etapas, com a perda do poder político das forças progressistas e a gradual implantação de retrocessos trabalhistas, num cenário que sucumbiu à ascensão do extremo-direitista Jair Bolsonaro.

Com a onda do coronavírus, que cancelou a quase totalidade das atividades culturais em todo o mundo, a situação das classes populares piorou. Deixadas de lado desde que as "generosas" elites intelectuais afirmaram que "rebolar já é fazer ativismo", elas viram seus direitos sociais e humanos se dissolverem um a um, quando itens das reformas trabalhista, previdenciária e outras que mais parecem deformas que reformas, eram aprovados em votações do Congresso Nacional.

O coronavírus é um vírus que causa a doença Covid-19, mal que teria surgido na China, e cujos sintomas vão de febre alta a problemas respiratórios. Vários países, inclusive o Brasil, têm vítimas da doença, e a Itália tornou-se o caso dramático, com milhares de mortes que causam pânico na população, obrigando as autoridades médicas a preferir o socorro das vítimas mais jovens e deixar as idosas morrerem, devido ao risco de carência de atendimento, remédios e lugares nos hospitais.

No Brasil, onde, até a tarde do dia 19 de março de 2020, foram contabilizadas as primeiras sete vítimas, cinco no Estado de São Paulo, duas no do Rio de Janeiro, prevê-se que as mortes possam atingir um ritmo pior do que na Itália.

Segundo matéria da BBC Brasil, feita pela correspondente paulista do portal britânico, Lígia Guimarães, que entrevistou Gilson Rodrigues, líder comunitário e presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, as favelas serão as maiores atingidas pela Covid-19, pela falta de políticas de atendimento das classes populares.

"É onde mais vão se registrar casos [de covid-19, a doença causada pelo vírus], vai ser nas favelas. Porque como é que um idoso vai entrar em uma situação de isolamento em uma casa com dez pessoas e dois cômodos? Esse isolamento é um isolamento para 'gringo ver', para rico. O pobre não tem condição de fazer. Vamos ter muitas perdas nas favelas, infelizmente", afirma Gilson, que destaca que o problema é nacional, não específico da comunidade de Paraisópolis, na capital paulista.

As favelas são ambientes dramáticos. No passado, a imprensa não cansava de definir as favelas como um problema de exclusão social, relacionado ao drama da falta de moradias. Só de uns anos para cá, sobretudo a partir das pregações festejadas da intelectualidade pró-brega, as favelas passaram a serem creditadas como "paraísos" de "gente feliz e esperançosa".

A confusão entre valorizar o povo pobre e valorizar, como ambientes, as favelas, assim como existe a confusão em defender a prostituição e se solidarizar às prostitutas, fez com que o discurso intelectual pró-brega, tão falsamente favorável ao povo pobre, só fez as classes populares serem deixadas à própria sorte.

Se o projeto ideológico da extrema-direita é exterminar o povo pobre pelo abuso da violência policial, se o projeto do entretenimento popularesco é evitar que as moças da periferia, manipuladas para defender um celibato sutilmente defendido pela mídia, tenham novos filhos, o coronavírus, ainda que sem propósito e de maneira acidental, pode também fazer diminuir as populações pobres através do conhecido quadro deficitário de políticas de saúde para as classes populares.

E isso é um risco terrível, que faz um alerta á opinião pública para que se criem políticas de assistência hospitalar ao povo pobre e a distribuição de remédios gratuitos. A triste realidade mostra o quanto tornou-se falido o discurso de intelectuais festivos, que achavam que as favelas eram "paraísos".

Tão zelosos em criticar o elitismo dos outros, os intelectuais pró-brega ignoram que os piores elitistas eram eles próprios, que acabaram transformando as favelas em reles paisagens de consumo, em detrimento de seus moradores.

FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, Portal G1, Portal UOL, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica.

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