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A DÍVIDA DOS MAIS VELHOS PELA MELHORIA DA CULTURA BRASILEIRA


KEVIN O CHRIS - UM DOS MAIS NOVOS NOMES DO ULTRACOMERCIALISMO MUSICAL BRASILEIRO.

Por Alexandre Figueiredo

Há cerca de quinze anos, uma geração de empresários e profissionais liberais que haviam chegado aos 50 anos tentaram esbanjar suposta erudição cultural. Nomes como Roberto Justus, Almir Ghiarone, Malcolm Montgomery, Eduardo Menga e Walter Mundell, além de serem maridos de mulheres mais jovens e atraentes, procuravam parecer mais velhos do que sua geração normalmente foi.

Presentes nas colunas sociais mas eventualmente também aparecendo na televisão e no mercado literário, esses homens atuaram como se fossem "versões miniatura" da geração de intelectuais que esteve em evidência nos bares da vida em 1958: Millôr Fernandes (que prefaciou dois livros de Almir), Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Porto, Nelson Rodrigues, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, Vinícius de Moraes e outros.

Todos eles, em suas entrevistas, tentavam associar à sua imagem referenciais culturais mais antigos: do jazzista Benny Carter ao jornalista e escritor Norman Mailer, além de Pablo Picasso, Winston Churchill, pintura expressionista do século XIX, castelos medievais da Itália, vinícolas antigas da França, a música de Antônio Carlos Jobim e por aí vai.

E isso partindo de uma geração que, em 1958, era criança e cujos heróis mesmo eram o Pica-Pau, os palhaços Arrelia e Carequinha, os cachorros Rin-Tin-Tin e Lassie, Tom & Jerry, e outros nomes do imaginário infanto-juvenil. Nos anos 1970, essa geração estava mais ocupada com os referenciais culturais da juventude elegante, e, musicalmente, com o chamado soft rock.

O pedantismo não deu certo. A atitude desses homens, que tentavam capitalizar suas profissões para a fama de aparentes "homens de sucesso" - no sentido em que um João Dória Jr., por exemplo, é "homem de sucesso" - , que associavam referenciais mais antigos do que eles, foi desmascarada pelo fato de que eles, que tentaram ser, em parte, formadores de opinião entre 2002 e 2008, não terem influído, assim como o resto de sua geração, para a melhoria cultural no nosso país.

Observa-se, portanto, que a erudição dessa geração que, nascida nos anos 1950, "descobriu" o passado ao completar justamente 50 anos de vida, e atualmente está caminhando para os 65, 70 anos, não passou de um pedantismo tardio, porque, até a juventude, homens e mulheres dessa geração em maioria preferiram ficar no seu horizonte temporal, em vez de praticarem a "arqueologia cultural" que diziam aderir quando seus cabelos se tornavam grisalhos.

É uma geração que não acompanhou as lições da Contracultura, a não ser algumas exceções, como indivíduos que assimilaram tardiamente a cultura hippie, por exemplo. Também é uma geração que viu com estranheza o punk rock, que seus contemporâneos nos EUA e Reino Unido produziram em meados da década de 1970.

Os homens que, aos 50, 60 anos, foram tentados a ter obsessão pela elegância, enquanto as mulheres passaram a ser beatas religiosas - como se as ex-hippies safra 1950-1955 tivessem vivido para ver a Nossa Senhora de Fátima na Portugal de 1917 - tiveram, também, filhos os quais não transmitiram a alegada erudição cultural.

Afinal, quem passou a manifestar um interesse pedante pelo jazz ou por literatura e pintura clássica depois dos 50 anos não iria entender com profundidade o passado cultural tardiamente apreciado e acolhido mais para obter vantagens pessoais na sociedade do que para realmente entender e gostar desses referenciais.

E aí, como transmitir para a geração dos filhos nascida a partir de meados dos anos 1970, sobretudo 1978, numa época em que pais e filhos deixaram de ter uma relação intensa, por causa do mercado de trabalho e dos constantes divórcios que causavam problemas familiares?

POTENCIAL DESPERDIÇADO

Em tese, quem nasceu a partir de 1978 tem mais condições de entender o passado do que seus pais cerca de 25 anos mais velhos. Estes acolheram o pedantismo cultural depois dos 50 anos mais pelo clichê que tiveram das pessoas grisalhas, que necessariamente tinham que imitar a geração de seus pais, nascidos por volta dos anos 1920 e 1930. Se esqueceram que os tempos mudam e os grisalhos também.

Mas, em contrapartida, o que sobrou de pedantismo nos pais e mães nascidos nos anos 1950, faltou em intuição nos filhos nascidos na virada dos anos 1970 para os anos 1980. Tendo nas mãos a Internet para garimpar informações, diferente dos pais que só viveram a implantação das redes televisivas por antenas de transmissão e, depois, pelo satélite, e mal conseguiram ser mais do que "televizinhos" e "televisitas" quando começaram a ver televisão.

Se os pais que mal conheceram a TV Rio passaram a tomar como seus referenciais do passado que eles só passaram a conhecer nos anos 1970, os filhos que conheceram a fundo a MTV tiveram dificuldade de entender referenciais anteriores ao mainstream dos anos 1980 e 1990, que eles acolheram com muita superficialidade.

Com essas distorções, a cultura brasileira, principalmente a musical, não conseguiu continuidade na relevância emepebista dos anos 1960 e 1970, produzida por artistas em maioria nascidos nos anos 1940. As gerações nascidas a partir de 1978 poderiam muito bem assimilar esse cenário emepebista, muitas vezes ignorado pelas rádios, não fosse a "educação hipermidiática" que tiveram na infância.

Com os pais ocupados no trabalho e nas vidas particulares - principalmente nos períodos de divórcios, em boa parte dos casais - , as crianças nascidas na virada dos anos 1970 e 1980 eram cuidadas por babás de origem pobre, num contexto em que as classes populares eram manipuladas pelo coronelismo midiático popularesco, que promovia a bregalização cultural como um meio de desmobilizar o povo pobre e reduzi-lo a uma caricatura de si mesmo.

Com essa influência, a geração pós-1978, mesmo de classes abastadas, passou a acolher o superficialismo fácil e tosco das músicas brega-popularescas que tocavam nas rádios "populares", além dos sucessos comerciais ou mesmo de hits manjados de nomes relacionados à música de qualidade.

Essa geração mais jovem tornou-se culturalmente superficial, acolhendo hit-parade, blockbusters, best-sellers e outros referenciais de sucesso comercial que lhes faz menos criativos no acolhimento de bens culturais e mais sujeito à manipulação da mídia hegemônica, criando dificuldades de ir além do óbvio, do previsível e do comercialmente consagrado.

A situação se complicou quando, a partir dos anos 1990, o comercialismo que atingiu a música, o cinema, a literatura e outras modalidades culturais fez com que o ditado "em terra de cego, quem tem um olho é rei" tomasse conta das gerações pós-1978.

Dessa forma, o que havia de relativamente mais antigo em referenciais comerciais da literatura, da música, do cinema etc passaram a ser considerados "preciosidades", dentro de um quadro de mediocrização que no Brasil propiciou o avanço da bregalização.

Assim, nomes como Bee Gees e ABBA, na música, ou Steven Spielberg, no cinema, tornaram-se superestimados e tratados como se não fossem comerciais. Junto a isso, a atribuição de "rock clássico" para o rock caricatural do poser metal, a partir de nomes como Guns N'Roses, Bon Jovi e Mötley Crüe, também segue essa tendência.

Mais tarde, mesmo a bregalização na música brasileira seria alvo de uma campanha de preciosismo artificial, com a retórica do "combate ao preconceito", que fez com que a "geração 90" dos neo-bregas, como Chitãozinho & Xororó, Leonardo, Daniel e Alexandre Pires terem a falsa reputação de "sofisticados", chegando a gravar arremedos de MPB em programas-tributo da Rede Globo de Televisão.

A geração pós-1978 apenas tardiamente passou a sair de seu playground cultural depois dos 35 anos, quando seus indivíduos passaram a ser pais e a conviver profissionalmente com pessoas mais velhas, acompanhando os poucos indivíduos dessa geração que já buscavam relevância cultural desde a juventude.

Mas a degradação cultural já avançou, produzindo tendências ainda mais comerciais que, mesmo assim, não podem fazer os bregas mais antigos ficarem "mais geniais" ou "menos comerciais". O avanço da bregalização, que produz o "sertanejo universitário" e suas duplas com vocalistas com os mesmíssimos timbres vocais, também segue com nomes ainda mais superficiais como Anitta, Pabblo Vittar, Thiaguinho e o mais recente fenômeno, Kevin O Chris.

Não houve um direcionamento pela melhoria da cultura brasileira e, em vez disso, criou-se a retórica do "combate ao preconceito" para forçar a barra da aceitação da bregalização cultural, que no fundo tem muito mais de preconceito do que se pensa, pois trata o povo pobre de maneira caricatural, visando tanto a desmobilização das classes populares como a inclusão das mesmas no consumismo obsessivo que traz lucros exorbitantes às empresas.

E a reboque disso tudo, criou-se um cenário político que resultou na eleição do extremo-direitista Jair Bolsonaro, o que desmascara a geração dos hoje avós de 65 a 69 anos que, salvo exceções, nunca contribuíram para a melhoria sócio-cultural do Brasil e que, mesmo ostentando falsa erudição cultural, nunca desenvolveram condições sociais para a ascensão de um novo Juscelino Kubitschek.

As cabeças brancas dessa geração, descontadas, repetindo, as exceções, devem estar vazias de conteúdo, pela incapacidade de terem transmitido referenciais culturais de qualidade que, só a muito custo, são retransmitidas por poucos e por vias mais do que alternativas, dentro de um cenário em que o mainstream se vende como pretensa vanguarda e pretenso clássico. Em terra de cego...

FONTES: O Globo, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, UOL, Portal Terra, blogues Mingau de Aço e Linhaça Atômica.

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