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COMO A DEGRADAÇÃO CULTURAL CHEGOU AO INCÊNDIO DA AMAZÔNIA


Por Alexandre Figueiredo

Qual a relação entre o suposto "combate ao preconceito" que a ideologia brega-popularesca propagou há mais de 15 anos com o incêndio que atinge boa parte da floresta amazônica atualmente? Muita coisa, se levarmos em conta que a bregalização cultural tirou o povo pobre do protagonismo, isolando os governos progressistas a ponto de abrir caminho para a retomada ultraconservadora que se iniciou em 2016 e se consagrou na vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

A bregalização cultural já foi um projeto mais discreto, motivado pelas relações entre as oligarquias midiáticas e mercadológicas e setores do poder midiático de São Paulo. Fenômenos como o cantor cafona Orlando Dias - espécie de Luan Santana para o contexto de 1958-1963 - e o apresentador Jacinto Figueira Júnior - atração popularesca, em 1964, estranhamente lançada pela TV Cultura de São Paulo, emissora educativa dos Diários Associados - eram alguns exemplos dessa fase.

Depois cresceram a música brega dos anos 1960-1970, na verdade pastiches tardios de modismos ultrapassados, como boleros e o rock comportado da linha de Paul Anka e Pat Boone, a pornografia de revistas eróticas de segundo escalão (como Brazil e Big Man Internacional), o sensacionalismo midiático, popularesco e religioso, sobretudo através de movimentos como a Igreja Universal do Reino de Deus, a Assembleia de Deus e o Movimento Espírita Brasileiro, expressões de devoção religiosa concorrentes ao Catolicismo, que em maioria se opôs ao poder ditatorial.

A ditadura militar acabou desenvolvendo, junto ao esquema midiático, empresarial e mercadológico, um cenário sócio-cultural bastante conservador, marcado pela diminuição do protagonismo das classes populares, que eram reduzidos culturalmente a estereótipos voltados ao consumismo e ao entretenimento. Esse processo permaneceu praticamente inalterado até o começo da redemocratização do Brasil.

EXPANSÃO

Mas esse processo cresceu quando o então presidente da República, José Sarney, e seu ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães, realizaram concessões de rádio e TV que eram dadas a políticos e empresários - mesmo aqueles sem aparente atividade político-parlamentar - que eram aliados aos dois, considerados os maiores oligarcas do Nordeste brasileiro.

A chamada "farra das concessões" ocorreu na segunda metade da década de 1980. Ela praticamente "desenhou" os paradigmas culturais e midiáticos a serem trabalhados pelo poder mercadológico na década de 1990, através de um processo voraz de degradação sócio-cultural trazida, principalmente, pela expansão da bregalização musical e pelo crescimento dos programas policialescos de televisão.

Praticamente tudo sofreu um processo de degradação: a chamada "música popular" foi atingida por um sem-número de ídolos popularescos que se multiplicavam, através de tendências pastiches de ritmos regionais, como "sertanejo", "pagode romântico", "forró eletrônico", axé-music, entre outros.

No rock, que sofreu um desgaste após o apogeu do movimento Rock Brasil, a pasteurização se deu quando rádios originais sofriam uma crise financeira, como Fluminense FM, de Niterói, e 97 FM, de Santo André, e eram extintas, enquanto rádios caricaturalmente comerciais, como a paulista 89 FM - que adotava uma mentalidade e uma linguagem pop, próximas da Jovem Pan FM - , cresciam, ditando os paradigmas de uma "cultura rock" divorciada da essência original do gênero.

Fora do âmbito musical, o crescimento do noticiário policialesco, com programas transmitidos no almoço ou durante à tarde e comandados por apresentadores de comportamento bronco, afetaram seriamente o inconsciente e consciente populares, através da espetacularização da violência e da tragédia, acostumando muito mal a população, principalmente pobre.

A hipersexualização se deu quando o fenômeno do grupo de "pagodão baiano" (uma variação da axé-music), É O Tchan, gerou outros grupos e dançarinas similares, enquanto, fora do âmbito musical, apresentadores como Gugu Liberato e, mais tarde, Luciano Huck, lançavam suas "musas sensuais", respectivamente através da Banheira do Gugu e dos fenômenos Tiazinha e Feiticeira.

Isso acabou impulsionando um mercado de "glúteos rebolativos" que se intensificou nos anos 2000, através do "funk" (principalmente as chamadas "mulheres-frutas") e também das diversas "musas sensuais demais", que incluíram paniquetes (Pânico da TV, versão televisiva do Pânico da Pan, da Jovem Pan FM), musas de futebol, "proibidas" e "peladonas", etc.

"COMBATE AO PRECONCEITO"

No fim dos anos 1990, vários intelectuais, dos quais se destacavam Ruy Castro e o falecido Mauro Dias, além de vários outros que se projetavam na ascendente Internet e em periódicos alternativos ou universitários, criticavam a mediocrização cultural da década, marcada sobretudo por nomes como o apresentador Carlos Massa, o Ratinho, o É O Tchan e os "sertanejos" e "pagodeiros" da linha de Chitãozinho & Xororó, Leandro & Leonardo, Só Pra Contrariar, Raça Negra e outros.

Para reagir a isso, o poder midiático e mercadológico, que inclui não só os grandes veículos de Comunicação como também grandes empresas patrocinadoras do entretenimento popularesco, que incluíam a indústria automobilística, os fabricantes de equipamentos de som, roupas e as indústrias de cerveja, resolveram reagir à rejeição de intelectuais e jornalistas ao popularesco predominante.

Os fenômenos popularescos estavam sofrendo um processo de sério desgaste, mas o empresariado percebeu que eles poderiam "prolongar a vida útil" ampliando sua reserva de mercado. Através de um lobby que envolveu publicitários, executivos de mídia, jornalistas e intelectuais associados - denominados de "intelectuais bacanas" por adotarem uma postura "simpática" num cenário de anti-intelectualismo - , desenvolveu-se uma campanha para blindar os fenômenos popularescos.

Através de uma retórica falaciosa do "combate ao preconceito" - afinal, a cultura brega-popularesca já abordava o povo pobre de maneira preconceituosa, espetacularizando a pobreza e a ignorância - , esse lobby de "intelectuais bacanas" buscava não apenas consolidar os fenômenos popularescos dos anos 1990 na década posterior, mas ampliar seu mercado, atingindo um público considerado de melhor poder aquisitivo e, por outro lado, um público de melhor formação educacional.

Durante cerca de quinze anos, desde a crise do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, em 2001, e o começo do governo Michel Temer, em 2016, passando por todo o governo do Partido dos Trabalhadores de Lula e Dilma Rousseff, criou-se essa falácia do "combate ao preconceito" através do pretexto da "cultura das periferias".

Ocultando as manobras do poder midiático e os interesses empresariais envolvidos, o discurso pelo "fim do preconceito" à bregalização cultural foi difundido pela chamada mídia hegemônica, a partir de veículos conservadores moderados, como as Organizações Globo e os grupos Folha e Abril, através de brechas "identitárias", ou seja, de flexibilidade comportamental, a chamada "liberdade de escolhas e costumes" do entretenimento consumista.

No entanto, as pressões de distribuidores de mídia impressa, por um lado, e a necessidade de ampliar o nicho ideológico, de outro, assim como para neutralizar a influência das esquerdas no âmbito cultural, fez com que a campanha em favor do brega-popularesco atingisse a mídia alternativa, através do empenho do jornalista Pedro Alexandre Sanches, treinado nos padrões ideológicos do Projeto Folha, da Folha de São Paulo, em conjunto com círculos intelectuais do PSDB.

GOLPE POLÍTICO

Com o proselitismo feito às esquerdas, que aceitaram a falácia da "livre expressão das periferias" para aceitar a bregalização cultural, estas forças progressistas não perceberam as armadilhas onde caíram, pois o povo pobre perdeu o protagonismo dos movimentos sociais, desviado para o entretenimento popularesco e seu consumismo.

Isso se tornou claro quando os debates progressistas ficaram praticamente isolados, enquanto se articulavam manifestações para tirar o PT do poder, já a partir das jornadas de 2013 em todo o Brasil. A falácia do "combate ao preconceito", além de promover a supremacia da bregalização cultural, acostumando mal o público pobre e juvenil, também enfraqueceu as esquerdas que foram induzidas a apoiar a degradação sócio-cultural sob a desculpa da "ruptura de preconceitos".

Com as passeatas do "Fora Dilma", com manifestantes usando camisetas verde-amarelas, Dilma Rousseff foi tirada do poder através de uma armação feita pelo presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Michel Temer, vice de Dilma, passou para o lado dos opositores e realizou um governo marcado por profundos retrocessos sociais, políticos e econômicos.

A mídia impressa de esquerda sofreu baixas, com a falência de Caros Amigos, o fim da versão impressa da revista Fórum e a crise financeira de Carta Capital. O Ministério da Cultura chegou a ser extinto na gestão de Michel Temer, mas protestos fizeram recuar da decisão, mas, mesmo assim, a atuação da pasta ministerial não foi a mesma. E, como legado trágico, o Museu Nacional, carente de manutenção, foi destruído por um incêndio em setembro de 2018.

Com as pressões para a vitória do extremo-direitista Jair Bolsonaro para a Presidência da República, que incluiu fraudes eleitorais e manipulação de algoritmos nas redes sociais, os retrocessos se agravaram com um governo que nem agenda positiva tinha. Enquanto isso, culturalmente o brega-popularesco exercia uma supremacia absoluta desde a queda do governo Dilma Rousseff,

A ênfase, nesse período pós-golpe, eram o reacionarismo dos programas policialescos de TV e o ultracomercialismo musical de Anitta, Luan Santana, Thiaguinho, Ferrugem (não confundir com o antigo ícone infanto-juvenil dos anos 1970), Pablo Vittar, Jojo Toddynho, Marília Mendonça e outros.

Com a perda do protagonismo das classes populares, e, depois, das forças progressistas, a queda vertiginosa do cenário político foi acompanhado pela decadência da mídia hegemônica, sobretudo quando se revelou que apresentadores como Sílvio Santos e Raul Gil, propagandistas da bregalização cultural que os intelectuais "bacanas" empurraram para as esquerdas, apoiam o governo Bolsonaro.

A perda das riquezas nacionais e das estatais brasileiras tornou-se uma realidade depois de 2016. Os retrocessos trabalhistas eram aprovados pelo Congresso Nacional através do jogo sujo dos votos comprados. Instituições como o Ministério Público, o Supremo Tribunal Federal e a Procuradoria-Geral da República passaram a atuar de maneira tendenciosa e interesseira em relação aos políticos conservadores que retomaram o poder em 2016.

E a coisa se deu de tal forma que as "caneladas" do presidente Bolsonaro acabaram por consentir que fazendeiros bolsonaristas, estimulados com a promessa de impunidade do governante, cujo projeto ideológico defende posturas nocivas à sociedade, como a defesa do porte de armas e ideais machistas e racistas, resolveram incendiar a floresta amazônica para fins de desmatamento ilegal, extrativismo abusivo e aumento das áreas de pecuária.

O incêndio na Amazônia já está causando um sério conflito político entre Jair Bolsonaro e o presidente francês Emmanuel Macron. A crise política brasileira atingiu níveis extremos e o nosso país vive um dos momentos mais frágeis de sua história.

Tudo isso se deu porque a bregalização vendeu uma falsa imagem de "ruptura com o preconceito", pois criou uma sociedade ainda mais preconceituosa. Instrumento de alienação cultural da ditadura militar e dos governos neoliberais de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, a bregalização se fantasiou de "esquerdista" para enganar as forças progressistas, que viram o povo pobre perder seu protagonismo ativista, abrindo caminho para o golpe político de 2016.

FONTES: O Globo, Folha de São Paulo, Carta Capital, Caros Amigos, Fórum, UOL, Linhaça Atômica, Mingau de Aço, Brasil 247.

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