Por Alexandre Figueiredo
Como naqueles episódios em que alguém atira uma pedra na vidraça de uma casa e foge, o discurso do "combate ao preconceito" praticamente desapareceu sem que houvesse alguma autocrítica por parte de seus ideólogos.
A ideia de aceitar a suposta cultura da bregalização, a "cultura" brega-popularesca ou "popular demais", que durante pouco mais de 15 anos prevaleceu no discurso midiático aparentemente unânime, entre 2000 e 2016, antecipou o golpe político que se deu nos últimos anos, se constituindo num golpe cultural que apenas se disfarçou sob um verniz "progressista".
Hoje vemos Jair Bolsonaro fazendo críticas à Lei Rouanet, denunciada por seus opositores por ser uma espécie de "mamata" para cantores e ídolos popularescos de grande sucesso. Em que pese o caráter leviano da declaração do hoje presidente da República, é claro que o discurso da bregalização, em parte, foi para favorecer a concessão de Lei Rouanet para ídolos da chamada "cultura de massa", na tentativa de dar a eles um caráter econômico menos "privado".
Daí o discurso que começou em artigos e reportagens de O Globo e Folha de São Paulo e em atrações da Rede Globo de Televisão ter sido difundido na mídia esquerdista, embora, com o tempo, isso fez desgastar os veículos dessa mídia alternativa, como Caros Amigos, que faliu, e Revista Fórum, que cancelou sua versão impressa, na forma de revista.
Passado o tempo, o que se entendeu como "cultura das periferias" e que, estranhamente, ganhou grande adesão dos chamados "sociopatas" das redes sociais, é uma versão caricatural da cultura popular, que se baseia em dois objetivos, um é promover uma imagem estereotipada do povo pobre, outra é aumentar os mercados dos ídolos popularescos.
LUCRO PARA EMPRESAS DE ENTRETENIMENTO
É conhecido que um lobby intelectual foi formado para promover a bregalização cultural, que, mesmo com todo o apelo supostamente progressista, que pegou desprevenidos setores influentes da esquerda brasileira, que aceitaram a narrativa populista de argumentos confusos, mas muito bem articulados.
Nessa narrativa, se fala do mito da "pobreza linda", da "periferia legal", na qual aspectos considerados negativos relacionados ao povo pobre eram vistos como "positivos": a mediocridade cultural, os valores retrógrados, as residências irregulares das favelas, a prostituição, o subemprego e o alcoolismo, este considerado "consolador dos problemas amorosos".
Esse discurso, veiculado na mídia esquerdista, criava um grande contraste com suas pautas gerais. Assim, nas matérias sobre política e cidadania, por exemplo, em veículos como Fórum, Carta Capital e Caros Amigos, se abordava o povo pobre como batalhador, ativista e conscientizado, nas matérias culturais o povo pobre aparecia como ingênuo, conformista e até mesmo patético, mas dotado de vitimismo na busca de "espaços" na chamada "cultura de elite".
No discurso geral, o povo pobre era sempre tratado como portador de inferioridade sócio-cultural, um preconceito trazido pela intelectualidade dita "sem preconceitos". A ideia, no entanto, era aceitar essa imagem "inferiorizada" - o tal "combate ao preconceito" - para que, depois, a chamada "classe média" pudesse "lapidar" os ídolos bregas e derivados para estereótipos "artísticos" mais palatáveis.
Chegava-se ao ponto de artistas de MPB e Rock Brasil, além de atores e outros famosos adotarem ídolos bregas e derivados como "mascotes". Nando Reis, por exemplo, durante anos promoveu Zezé di Camargo para um público mais "exigente". Zeca Baleiro produziu um disco de Odair José. Os Paralamas de Sucesso respaldaram Chimbinha, então guitarrista da Banda Calypso. Patrícia Pillar dirigiu um documentário sobre Waldick Soriano. E por aí vai.
Em muitos casos, o envolvimento de personalidades progressistas se dava por boa-fé, acreditando que, ao defender a bregalização cultural, se promovia a inclusão social, a emancipação e o progresso das classes populares. Mas ignorava-se que os ídolos musicais respaldados eram muito aquém de artistas populares do passado, como Jackson do Pandeiro e Cartola, cujo inigualável talento mostrava que as classes populares não estão associadas à inferiorização cultural da bregalização.
A defesa da bregalização chegou a ocultar o fato de que ela foi um cenário "cultural" estimulado pela ditadura militar. O historiador Paulo César Araújo chegou a apostar numa teoria conspiratória de que o brega teria sido uma reação automática dos opositores da ditadura militar que, durante dez anos, teria desafiado o AI-5.
A tese, embora bastante agradável, não fazia sentido, pelo seu teor bastante binário. Ele desconhece que as emissoras de rádio e TV que mais tocavam música brega eram justamente as que mais apoiaram a ditadura militar.
PAUTAS IDENTITÁRIAS COMO "ISCA"
O "funk", carro-chefe desse mito da "pobreza linda", embarcava na campanha intelectual através de pautas identitárias, como "isca" para fazer valer o verniz "progressista". As pautas identitárias são aquelas relacionadas a aspectos sócio-comportamentais das classes populares, como a causa LGBTT ou LGBTQ (ligada ao homossexualismo e suas variantes), a negritude e o feminismo.
A retórica do "funk" impulsionou o discurso da bregalização com seu aparato "moderno" que parecia monopolizar a pauta das esquerdas, que se esqueceram que o gênero não era mais do que um som dançante ultracomercial, inspirado na Miami anticastrista que lançou, nas casas noturnas, o miami bass, precursor do ritmo que, a partir de 1989, se desenvolveu no Rio de Janeiro.
O "funk" começava a mostrar aspectos estranhos, como sua associação estratégica com as Organizações Globo e com personalidades como Luciano Huck e Alexandre Frota. Além disso, personalidades como a sambista Beth Carvalho alertavam que o "funk" estava um instrumento da CIA, órgão ligado ao governo dos EUA, para "colonização cultural" dos subúrbios brasileiros.
O alerta de Beth Carvalho foi ridicularizado na Internet, por gente que se diz "de esquerda" mas defendia a ditadura. Guilherme Alonso, por exemplo, que chegou a dizer que o general Emílio Garrastazu Médici, da fase mais repressiva da ditadura militar, era "tão popular quanto Lula", ironizou dizendo que "gostaria muito que fosse verdade" a ligação do "funk" com a CIA.
No entanto, esse alerta é verídico. O envolvimento da CIA era indireto, mas verídico. Instituições "assistenciais" ligadas ao órgão do governo estadunidense, a Soros Open Society e a Fundação Ford, financiavam instituições sociais que faziam propaganda do "funk", a partir do Instituto Overmundo, que repassava tais recursos.
APOIO DE REACIONÁRIOS
A associação do "funk" e de outros fenômenos "populares demais" ao contexto do reacionarismo ideológico dificilmente tem reconhecimento oficial nas esquerdas. A semelhança de discurso dos ideólogos do "funk", como o então presidente da APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), MC Leonardo e o presidente da Liga do Funk, Bruno Ramos, com o discurso que o antigo sargento José Anselmo dos Santos, o Cabo Anselmo, fazia nos anos 1960, é contundente.
Em ambos os casos, favelados e militares de baixa patente eram usados como pretexto para o desvio de foco de pautas reivindicatórias de qualidade de vida, como as reformas de base do governo João Goulart e os programas sócio-econômicos dos governos do Partido dos Trabalhadores.
O "funk", que teve como "embaixador" o apresentador Luciano Huck - ligado ao empresariado conservador, de tendência neoliberal - e cujas musas siliconadas eram empresariadas por Alexandre Frota - depois ligado ao fascismo político - , mostrava MC Leonardo e Bruno Ramos emulando Cabo Anselmo nas suas pautas "ativista-identitárias". Bruno Ramos chegava mesmo a se aproximar dos trejeitos nervosos de Cabo Anselmo, "esquerdista" depois denunciado como "agente da CIA".
Nas redes sociais, o "popular demais" era altamente respaldado pelos chamados "sociopatas", internautas de ideias ultraconservadoras apesar do aparato rebelde e moderno de seus discursos e comportamentos. "Funk" e "sertanejo" se tornaram os estilos mais apreciados por este público, embora os demais gêneros "populares demais" sejam apreciados por este público.
Além disso, Zezé di Camargo, cantor "sertanejo" que simbolizou o falso esquerdismo em 2005, passou a simbolizar a queda de máscara do "popular demais", na qual trocou o tendencioso apoio a Lula com o de Aécio Neves e, mais recentemente, com o candidato fascista Jair Bolsonaro.
Mas a queda de máscara se deu quando os maiores divulgadores da música cafona do passado, os apresentadoras Sílvio Santos e Raul Gil, e emissoras como Bandeirantes, SBT e Record, passaram a apoiar a candidatura de Jair Bolsonaro, pondo por terra abaixo o mito "progressista" da bregalização cultural.
Dessa forma, o golpe cultural antecipou o golpe político, através de uma campanha sutil da intelectualidade pró-brega, definida como "intelectualidade bacana" por parecer "simpática" num contexto de anti-intelectualismo vigente no Brasil, em que um renomado pedagogo como Paulo Freire recebe campanha para ser desqualificado como educador.
Essa intelectualidade, embora adotasse um discurso "favorável" e "solidário" às esquerdas, colaborava com o poder midiático, ampliando a bregalização para novos mercados como o público de classe média alta, elitista e reacionário, mas receptivo a tendências musicais e comportamentais fundamentadas pela cafonice, pela pieguice e pelo pitoresco.
Foi a partir dessa "cultura popular demais", que tratava o povo pobre como caricatura e que sempre prevaleceu durante governos conservadores - como a música brega, na ditadura militar, o "funk" e o "sertanejo", no governo Fernando Collor, e a axé-music, no governo Fernando Henrique Cardoso - . que se criaram as condições para a desmobilização das classes populares a partir da ênfase desse entretenimento da cafonice e do mau gosto.
Desmobilizando o povo pobre, distanciado de debates mais relevantes, o discurso em prol da bregalização abriu caminho para réplicas mais reacionárias, criando um outro discurso que acabou desmoralizando o PT, acusado de "enfraquecer culturalmente" as classes populares.
Depois o discurso se transformou nas pautas reacionárias "contra a corrupção" que culminaram no golpe em etapas ocorrido em 2016, com a ascensão de Michel Temer, vice da impedida presidenta Dilma Rousseff, e em 2018, com a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro. Com o "popular demais", as esquerdas perderam o protagonismo político respaldando essa "cultura" pitoresca, mas de essência conservadora.
FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, Revista Fórum, O Globo, Folha de São Paulo.
Comentários