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COMO O "POPULAR DEMAIS" ABRIU CAMINHO PARA O NEOCONSERVADORISMO NAS PERIFERIAS


Por Alexandre Figueiredo

Em tempos de proximidade para o ingresso oficial a um quadro sócio-político ultraconservador, através da posse de Jair Bolsonaro, presidente eleito do Brasil, pergunta-se o que levou boa parte das periferias e do meio popularesco a aderirem de vez a esse cenário, quando imaginávamos que o nosso país respiraria progressivismo até nos momentos mais difíecis.

Entre a provocatividade gratuita e o mau gosto da cafonice, todo o apelo de uma "cultura popular demais", que é o brega-popularesco, sinalizava um confuso, contraditório mas, de certo modo, persistente, processo de liberalização dos costumes, embora vários deles sigam paradigmas conservadores, como a objetificação do corpo feminino pelas "mulheres-frutas".

O fracasso de todo um discurso comandado pelo trio central de propagandistas da bregalização cultural, o historiador Paulo César de Araújo, o jornalista Pedro Alexandre Sanches e o antropólogo Hermano Vianna, de "combater o preconceito" atribuído ao repúdio às duvidosas expressões que combinam comercialismo cultural e mau gosto estético, que é o brega-popularesco ou o "popular demais" - como a opinião pública mainstream denomina - , abriu caminho para o bolsonarismo.

Ficamos perguntando quais foram as condições que esse discurso permitiu para que as chamadas "periferias" se tornassem conservadoras, e não o contrário, como se imaginava, pelo menos, desde 2005. Isso pode ser explicado por três prováveis abordagens que direcionaram o povo aos ventos do conservadorismo extremo.

ILUSÃO DA REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA

Durante um tempo, os intelectuais da bregalização tentaram pregar que a era digital seria marcada predominantemente por rebeliões de caráter progressista, que criariam "primaveras socialistas" que transformassem a Internet na sonhada "aldeia global" prevista por Marshall McLuhan, teórico da Comunicação do século XX.

Essa utopia seguia o caminho da Contracultura, movimento social de grandes propostas de renovação comportamental, não necessariamente políticas mas quase sempre progressistas. Ideólogos do mundo inteiro imaginavam que o avanço das tecnologias digitais iria fazer com que as vozes progressistas ressoassem mais fortes, provocando uma revolução social no planeta.

Era a ilusão de que ferramentas como Facebook, Twitter, YouTube e Orkut sejam necessariamente progressistas, e que as redes sociais seriam uma trincheira predominantemente de esquerda. No Brasil, ideólogos como o advogado Ronaldo Lemos, da Fundação Getúlio Vargas, sinalizavam para essa utopia, que parecia fazer sentido em 2011, quando começaram as "primaveras" do Oriente Médio.

Tempos depois, observou-se que a coisa não era bem assim. Já se observava, por exemplo, que o reacionarismo social juvenil já existia em atividade intensa desde os tempos do Orkut. Em 2007, observaram-se jovens reacionários até na maior comunidade do portal social, "Eu Odeio Acordar Cedo", que já expressavam o perfil ultraconservador, mas agressivo e desbocado, que só foi considerado típico nas redes sociais de 2014 para cá.

A combinação de convicções pessoais, submissão ao establishment político-midiático-cultural e uma contraditória roupagem de apelos visuais e linguísticos modernos com ideias reacionárias e pontos de vista conservadores derrubou a ilusão que havia pouco tempo atrás de que as redes sociais seriam um paraíso de progressismo e avanços sociais, em que pese o caráter oficialmente neutro de tais espaços digitais.

UFANISMO DA POBREZA SIMBÓLICA

Se as redes sociais fizeram os jovens serem conduzidos a ideias ultraconservadoras, a ideologia intelectual trazida por Araújo, Sanches e Vianna, servida na mídia de esquerda porém mais típica de abordagens conservadoras flexíveis da Rede Globo e Folha de São Paulo, tentava promover a ilusão de que a bregalização promoveria o progressismo nas comunidades pobres brasileiras.

Era um discurso confuso, porém com métodos sofisticados. Usava-se recursos textuais ou visuais de documentários, monografias ou de matérias jornalísticas em que se misturavam a técnica da História das Mentalidades - abordagem histórica da qual a sociedade como um todo é incluída no protagonismo histórico social - , de Marc Bloch, e do Novo Jornalismo - técnica de narrativa com linguagem romanceada - , de Tom Wolfe.

Tudo isso era feito para promover o mito da "pobreza linda" e da "periferia legal". Era um discurso na qual aspectos negativos da população pobre, por serem involuntariamente vividos, como a miséria, a ignorância, o mau gosto estético, a precariedade na qualidade de vida e no emprego e a busca de soluções desgradáveis e paliativas, como o comércio pirata-contrabandeado e a prostituição, eram promovidos como se fossem "positivos".

O discurso intelectual vigente, propagandeado sobretudo por Pedro Alexandre Sanches nos textos em que escreveu para Caros Amigos, Fórum e Carta Capital (onde atualmente trabalha), apelava para a suposta apreciação favorável às classes populares, dentro de uma visão etnocentrista própria das elites intelectuais, que viam no entretenimento comercial e irregular do povo pobre paradigmas que mais convinham à imaginação idealizadora dessas classes pensantes.

Desde quando cientistas sociais baianos como Milton Moura e Roberto Albergaria (este já falecido) adotavam esse "bom etnocentrismo" como forma de enxergar o consumismo lúdico do povo pobre como suposto ativismo social, superestimando aspectos de aparente provocatividade comportamental, dentro de valores supostamente estranhos às classes mais ricas, criou-se um pretenso consenso no qual a bregalização seria um caminho para a "esquerdização" do Brasil.

Mas a bregalização seguia valores que o sociólogo Jessé Souza entende como culturalismo conservador. A contraposição do "corpo versus espírito", atribuindo aos pobres a ideias ligadas ao sensualismo, à corrupção e à emotividade, em detrimento da elite "de tradição protestante dos EUA" ligada à impessoalidade, racionalidade e moral. Essa dicotomia é difundida pelo discurso dominante das elites com o objetivo de "justificar" a inferiorização atribuída ao "mundo subdesenvolvido".

Este discurso apenas recebia uma "ligeira inversão" da intelectualidade pró-brega, que apenas interpretava a mesma dicotomia, sem deixar de legitimá-la, dando ao povo pobre uma posição aparentemente mais "positiva". Isso não deixava de representar uma conformação com a pobreza e as injustiças sociais, não assumida pelo discurso intelectual, que era capaz de ver rebelião política e comportamental apenas num simples rebolado.

A pobreza simbólica era mantida, mesmo quando o discurso intelectual apelava para as elites aceitarem como "positiva" essa imagem idealizada do povo pobre. Só que essa imagem da "pobreza linda", da transformação das favelas, roças e sertões em "Disneylândias" do consumismo e da permissividade, além de não romper com paradigmas mercadológicos, causava sérios problemas até para os pobres.

Daí que, no discurso, a prostituição, as favelas e a ignorância eram "institucionalizadas", sob a desculpa de que os intelectuais estavam valorizando a população pobre. Misturava-se consumismo, provocação comportamental, ignorância e mau gosto e criava-se um "paraíso" inconcebível para tais ambientes, uma "pobreza linda" na qual uma habilidosa retórica acabava prejudicando os pobres, tornados "reféns" de suas situações desagradáveis.

Viver em favelas em construções irregulares de difícil acesso, a prostituição é a comercialização do corpo, o comércio informal que inclui produtos piratas e contrabandeados misturados a usados, mas tudo isso era incluído num combo ideológico que definia essa situação arriscada, sujeita a dramas e tragédias - como a repressão policial e a violência machista - , como "positiva" e "libertária".

Criavam contrastes depoimentos de prostitutas dos EUA e da Europa que narravam seus dramas gerados em suas profissões, denunciando a violência de cafetões e fregueses, e o discurso que prevalecia no Brasil, da "prostituta feliz" que "liberava o corpo e o prazer para gerar renda", e as prostitutas chegaram até a ganhar sindicato e rádio comunitária, em vez de serem ajudadas a sair dessa situação e buscar meios melhores de emancipação social.

CONSERVADORISMO RELIGIOSO

A ilusão da rebelião comportamental do brega-popularesco pregada pela retórica intelectual também causou sérios problemas. A novidade das novas relações afetivas, trazidas pelos movimentos LGBTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros), num contexto de "novidades identitárias" da sociedade brasileira, pode ter sido muito bem difundida em classes médias e de considerável instrução social, mas ficou complicado mostrá-la para as classes populares.

Isso foi um grande erro. A bregalização, que já transformava a pobreza em espetáculo, e, mesmo em nome do "fim dos preconceitos", fortalecia novas formas de preconceito e reciclava velhas, esbarrava, nas chamadas "periferias", com a influência das seitas evangélicas definidas como "neopentecostais", como Igreja Universal do Reino de Deus e Assembleia de Deus.

Um fenômeno como Pabllo Vittar, cantor andrógino de pop brega, que oficialmente é referido pelo gênero feminino (como "cantora"), é difícil de ser explicado num ambiente pobre que anda procurando seu caminho e seus valores, num confuso contexto em que a bregalização desafia os pobres a decidir entre construir valores culturais próprios ou forjar pretensos valores culturais através de uma "tardia americanização" de costumes e perspectivas, assimilando modismos já obsoletos.

A visão etnocêntrica de intelectuais pró-brega que vivem nas grandes capitais e de lá expressam seu etnocentrismo "positivo" em relação às populações pobres das zonas urbanas, suburbanas e rurais, incluindo o interior do Brasil, esbarrou em muitíssimos equívocos, lhes dando dificuldades de, por exemplo, procurar algum caráter libertário na música "sertaneja".

A ênfase com que os ideólogos da bregalização faziam com o chamado "mau gosto popular", combinando elementos de mediocridade, ignorância, comercialismo em um conjunto de ideias associadas à "provocatividade", dando a falsa impressão de ser um desafio aos "padrões estéticos e moralistas da sociedade mais rica", não trouxe os resultados esperados.

Embora apreciassem muitos dos ícones musicais, comportamentais e jornalísticos associados à cafonice e ao pitoresco, independente de haver ou não subversões comportamentais, a influência evangélica e do próprio poder oligárquico da mídia que difunde o "popular demais" - como as redes nacionais de televisão e as rádios locais controladas por famílias poderosas - fizeram o povo pobre aderir, em boa parte, ao ultraconservadorismo político-ideológico.

A Teologia da Prosperidade, forma religiosa de meritocracia pregada pelas igrejas neopentecostais fez a guinada ultraconservadora, que caminhava lado a lado a supostas subversões comportamentais como a cafonice cultural e os apelos sensacionalistas diversos - como a tatuagem, cujo uso é intensificado pelas subcelebridades - , fez com que a utopia da "pobreza linda" fosse relativizada por uma visão dos pobres menos ufanista e mais aproximada das classes médias conservadoras.

O moralismo crescente nas redes sociais, o conservadorismo social através do consumismo, que dispensava qualquer questionamento sobre as injustiças sociais, a curtição comercial das noitadas e a submissão não-assumida aos valores da mídia hegemônica (nacional ou local) nas redes sociais revela o quanto o "popular demais", que se intensificou na Era Collor mas era originário da ditadura militar, foi bastante influente na "cultura" do bolsonarismo.

A combinação de apelos à violência nos jogos eletrônicos dos bares suburbanos e rurais, a mistura de aspectos antigos e novos no imaginário cafona em geral, onde a libertinagem de costumes se alternava com o moralismo rigoroso conforme o contexto, assim como o sensacionalismo, o piegas e o moralismo retrógrado, combinados entre si, fizeram com que a breve utopia de 14 anos de que a cafonice iria provocar a revolução social acabou.

Aliás, não havia de fazer sentido. A bregalização envolve uma ênfase em absorver modismos extrangeiros considerados ultrapassados, refletindo o atraso cultural de uma sociedade dominada, que recebia paradigmas culturais de veículos de comunicação controlados por oligarquias dominantes e conservadoras.

Tinha que dar mesmo no apoio do "popular demais" a Jair Bolsonaro, através do sensacionalismo das fake news, da evocação do moralismo conservador e dos apelos ao mesmo tempo pitorescos, justiceiros e espetacularizados de sua figura de ex-capitão.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

SOUZA, Jessé. A Tolice na Inteligência Brasileira ou Como o País se Deixa Manipular pela Elite. São Paulo: LeYa, 2015.

FONTES

O Globo, Carta Capital, Caros Amigos, Folha de São Paulo, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica.

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