Por Alexandre Figueiredo
A crise brasileira vivida nos últimos anos se deu, em parte, pela contribuição de uma parcela de intelectuais elitistas, mas pretensamente progressistas, que, clamando pela "ruptura do preconceito", defendiam o establishment do entretenimento, envolvendo música e comportamento, exaltando fenômenos conservadores mas de forte apelo popular.
Não houve uma mea culpa oficial dessa intelectualidade, mas tão somente uma "mudança de assunto". Passaram a comentar sobre os deslizes da Rede Globo, sobre nomes esquecidos da MPB, sobre aborto, nos fazendo esquecer que essas pessoas defendiam ícones "populares demais" que eram patrocinados pela mesma Rede Globo que hoje dizem repudiar.
Quebrada a vidraça da cultura brasileira, a falácia do "combate ao preconceito", que na verdade era um mecanismo para prolongar modismos comerciais sob a retórica da "etnografia", do "ativismo" e da "provocatividade", fez com que o chamado "gosto popular" declinasse a ponto de haver um misto de apatia e reacionarismo nas chamadas redes sociais.
Foi criado um monstro? Para que valeram os clamores "etnográficos" de intelectuais que, num contexto de anti-intelectualismo, pareciam ter um apelo mais "simpático" à sociedade, a ponto de poderem ser definidos como "intelectuais bacanas"?
Para que valeram os textos aparentemente atraentes de gente que varia de um acadêmico regional, como o historiador e antropólogo baiano Milton Moura, ao ambicioso "esquerdismo" arrivista do jornalista Pedro Alexandre Sanches, na propaganda do chamado "popular demais" como um esforço de manter, para a posteridade, mercadorias culturais de valor duvidoso como se fossem "o legado etnográfico das classes populares"?
Feito o estrago, o "combate ao preconceito" só fez aumentar, e não diminuir, o preconceito. O preconceito que se supunha, de maneira bastante discutível, contra tendências de aparente apelo popular, mas claramente patrocinados pelo mercado capitalista e pelo poder midiático vinculado - embora os intelectuais "bacanas" fizessem vista grossa nesse detalhe - , voltou-se, na verdade, aos valores culturais mais consistentes.
A discriminação que nunca ocorreu contra os ídolos brega-popularescos - a não ser sob o enfoque etnocêntrico da intelectualidade "bacana" - , que sempre foram aceitos pelo mercado e pelo poder midiático que só os "abandonava", parcialmente, quando os modismos se encerravam, passou a ser contra intelectuais sérios, artistas de MPB, ativistas sociais e até contra os movimentos sociais.
O "POPULAR DEMAIS" VIROU ELITISTA
O bombardeio de narrativas em prol do "combate ao preconceito" de tendências brega-popularescas, comparável ao da articulação do IPES-IBAD contra o governo João Goulart nos anos 1960, clamava por uma suposta valorização da cultura das classes populares, atribuindo a elas fenômenos marcados pelo alcance ao grande público e à sua evidência na agenda temática das redes sociais.
A ideia era, em tese, supostamente consagrar as classes populares e atribuir aos modismos vigentes desde o fim da década de 1960 - como as duas primeiras gerações de ídolos cafonas, como Waldick Soriano e Odair José - uma suposta rebelião popular, a partir de uma narrativa, cujo nível de veracidade é bastante duvidoso, inaugurada pela "biblia" Eu Não Sou Cachorro, Não, de Paulo César de Araújo.
O problema é que essa narrativa ignora que tais modismos sempre ocorreram sob o respaldo da mídia hegemônica, e as alegações de que os ídolos "populares demais" eram discriminados por essa mídia não tinham o menor sentido de lógica.
Criou-se até mesmo uma tese de que os ídolos "popular demais" apareciam na mídia hegemônica por motivo de "enfrentamento" e a mídia hegemônica acolhia esses ídolos por "apropriação". A tese "conflituosa" é desprovida de lógica, uma vez que não se observou conflito algum nos espetáculos midiáticos, em que mídia e ídolos se comportam em confortável cumplicidade.
Com o tempo, argumentos que mais pareciam fruto de um pensamento desejoso do que de uma abordagem científica, como "livre expressão do povo pobre" e "autossuficiência das periferias", conceitos mais marqueteiros do que etnográficos, perderam completamente o sentido.
Citando como exemplos o "funk" e o "sertanejo", estilos "populares demais" que mais atraíram público, e o chamado jornalismo policialesco, considerado de maior alcance do público, aspectos mais típicos da sociedade elitista foram observados, contrariando a "livre expressão das periferias" tão alardeada pela retórica intelectual dominante.
Exemplos disso são as festas de luxo de vários nomes do "funk" - o mais recente foi o casamento dos funqueiros MC Guimê e Lexa - , bem ao gosto da alta sociedade, as posturas conservadoras de "sertanejos" como Zezé di Camargo (que chegou a afirmar que o Brasil "nunca teve uma ditadura militar" e Gusttavo Lima e Eduardo Costa, que manifestaram apoio ao fascista Jair Bolsonaro.
Juntamente a isso, se observou o apoio da funqueira Renata Frisson, a Mulher Melão, à Operação Lava Jato - símbolo do conservadorismo político e influente no golpe político de 2016 - , o moralismo punitivista de José Luiz Datena, do policialesco Brasil Urgente, e as chacotas do jornal popularesco Meia Hora ao ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva.
Tais fenômenos contrariam a natureza progressista atribuída à bregalização cultural, sem falar do fato de que, se no mundo real os intelectuais progressistas, na boa-fé, fazendo propaganda do "popular demais" motivados pelo lobby intelectual dominante, nas redes sociais são os sociopatas que mais defendem a bregalização da cultura brasileira.
ULTRACOMERCIALISMO
Outro ponto que chama a atenção é que, com o tempo, o brega-popularesco, na sua modalidade musical, sucumbiu ao comercialismo de tal maneira que chegou-se a uma geração que pode ser definida como "ultracomercial". Nomes como Anitta, Marília Mendonça, Pablo Vittar, Thiaguinho, Luan Santana, Ludmilla e muitos outros parecem mais sintonizados com o pop estadunidense do que com o patrimônio da cultura popular brasileira.
A americanização era uma meta desde os primeiros ídolos cafonas, como Waldick Soriano. O problema é que o mercado de "música popular" midiática sempre acolheu com certo atraso modismos estrangeiros. Tradicionalmente aliado ao contexto conservador, ele só foi empurrado para o contexto esquerdista visando criar uma base de apoio para o envio de recursos estatais da Lei Rouanet.
Só recentemente, a música brega-popularesca atingiu um patamar de relativa contemporaneidade, levando em conta que os EUA mantém uma linhagem de pop comercial desenvolvida desde 2002. Isso fez com que ídolos que pareciam soar datados, como Anitta e Luan Santana, pudessem soar contemporâneos porque acompanharam a continuidade do cenário de quinze anos atrás.
Outro aspecto que se observa, também, é que no contexto do ultracomercialismo, os ídolos mais antigos da música brega-popularesca se tornaram pretensamente cult, sob o evidente respaldo da grande mídia.
Chitãozinho & Xororó, por exemplo, que nunca tiveram um grande sucesso de cunho autoral, consagrados pela antiga "No Rancho Fundo", na verdade uma velha canção de Lamartine Babo e Ary Barroso, trocaram essa escolha pedante por uma popularesca, fazendo um revival de si mesmos com a canção do ídolo brega José Augusto, "Evidências", sob o claro selo da Rede Globo, que patrocina a dupla.
A Globo também resolveu relançar o É O Tchan, pagando atores para dançar seus sucessos em eventos, forçando o revival dessa ala rebolativa da axé-music, que "batizou" o esquema de politicagem das emissoras de rádio e TV, após o sucesso de "pagodeiros" e "sertanejos" de 1989-1992.
Com essa estratégia, a grande mídia tenta consolidar a "MPB de mentirinha" a que estão associados os ídolos "populares demais" dos anos 90, tentando fixar no gosto das gerações mais recentes a mediocridade musical do período noventista, apoiado abertamente pela mídia solidária aos governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.
Isso fez com que a música comercial brasileira se tornasse cada vez mais dominante, e, na medida em que os jovens passaram a ter preconceito com a cultura brasileira de qualidade, sobretudo a música, a ponto de não poder mais discernir o que é ou não comercial, a intelectualidade que apoiou a bregalização agora chora o leite derramado.
Num momento em que novos cantores surgem sem que se possa discernir quem é realmente MPB e quem é brega-popularesco, os intelectuais "bacanas" ficaram em silêncio. Mudaram de assunto e agora falam e escrevem sobre outras coisas, tentando dar um viés "mais progressista" a seus textos.
Diante da vidraça quebrada da cultura brasileira, os intelectuais mais badalados do Brasil se encolhem no seu canto, enquanto a sociedade em geral contabiliza o prejuízo cultural da bregalização que, tida como "sem preconceitos", tornou a sociedade brasileira mais preconceituosa do que antes, a ponto de reivindicar o golpe político que arrasou o Brasil.
FONTES: UOL, Carta Capital, O Globo, blogues Mingau de Aço e Linhaça Atômica.
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