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APOIO DE INTELECTUAIS À BREGALIZAÇÃO FOI PEÇA DO JOGO GOLPISTA

PASSEATA CONTRA DILMA ROUSSEFF NA AV. PAULISTA, EM 13 DE MARÇO DE 2016.

Por Alexandre Figueiredo

O cenário político e social de hoje, que já era grave e se tornou bastante delicado depois da prisão do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, se deve principalmente pelo jogo político no qual atuaram não somente opositores assumidos, mas também pretensos aliados que pareciam estarem comprometidos com a causa progressista dos governos de Lula e Dilma Rousseff.

Todavia, como se observou nas manobras políticas de 1964, o golpismo político que se deu em várias etapas em 2016 e ocorreu mais adiante em 2017, culminando, mais recentemente, com a prisão de Lula, foi um jogo no qual não se pode contentar com o aparente maniqueísmo que aponta para a oposição simples de forças progressistas e forças reacionárias.

Em primeiro lugar, o golpismo político, tanto em 1964 quanto em 2016, só foi possível pelo desvio de foco de causas progressistas para aspectos pontuais ou secundários que, por mais que tivessem alguma relevância dentro dos movimentos progressistas, causaram prejuízo às causas mais prioritárias na medida em que as causas pontuais ou secundárias eram superestimadas.

Entre 1963 e 1964, o movimento dos fuzileiros navais, no Rio de Janeiro, comandados pelo sargento José Anselmo dos Santos, o "Cabo Anselmo", supervalorizava pautas que, a princípio, eram até justas, como reivindicar direitos que os militares de baixa patente não tinham, que era o direito de se casarem e de votarem e serem eleitos para cargos politicos.

O problema é que essas causas deveriam ser levadas em conta depois, já que havia as reformas de base do governo João Goulart - muito diferentes da "reforma" que se observa no projeto político do presidente Michel Temer, porque as "reformas" deste são voltadas para as elites, e as de Jango foram voltadas para as classes populares - que deveriam ser vistas como prioridades, porque envolviam problemas como Educação, Agricultura, Economia, Infraestrutura etc.

O caso de Cabo Anselmo tornou-se conhecido depois, com o passar do tempo. Aparentemente, Anselmo continuou atuando em movimentos esquerdistas, chegando a participar de um grupo de guerrilha contra os arbítrios do Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que tornou a ditadura militar mais repressiva. Mas, como integrante da Vanguarda Popular Revolucionária, Cabo Anselmo decidiu denunciar seus colegas e entregá-los para o DOI-CODI, para a tortura e morte dos envolvidos.

Com o tempo, surgiu a revelação: Cabo Anselmo, que alegava que "denunciou os colegas" por estar "cansado da luta armada", era, na verdade, um agente da Central Intelligence Agency (CIA). Anselmo nunca teria sido de esquerda, mas teria se infiltrado nesses movimentos para desestabilizar o governo João Goulart e enfraquecer os movimentos sociais e as esquerdas em geral.

Essas revelações foram divulgadas logo quando a ditadura militar estava no fim, a partir de 1983. Na época, muitas das informações que haviam sido ocultas e só eram conhecidas nos bastidores dos opositores da ditadura militar eram praticamente ocultadas pela censura e pela repressão, além do fato de que atitudes como a de Cabo Anselmo eram inesperadas até mesmo para o mais desconfiado esquerdista.

E O "CABO ANSELMO" DE HOJE?

A tarefa de Cabo Anselmo, como estratégia de desnortear os movimentos esquerdistas, se pulverizou. E o setor que passou a ser explorado é o da Cultura, em especial o da cultura popular, uma área em que muitos esquerdistas duvidam que fosse explorada de maneira leviana.

Mesmo o fato da transformação na cultura popular em formas caricaturais, estereotipadas e abertamente mercenárias, com claros interesses comerciais promovidos pela indústria fonográfica e pelo poder midiático, esse subproduto chamado "popular demais" ou "brega-popularesco" era empurrado pelas pautas esquerdistas apenas levando em conta a simbólica, porém, discutível representação da imagem do povo pobre.

Seus ídolos, que vão de Waldick Soriano até MC Kevinho, passando por uma série de ídolos "populares" até profissionalizados e tecnicamente corretos - como os ídolos neo-bregas dos ritmos "populares" midiáticos dos anos 1990 e 2000 - , claramente representam problemas sociológicos e antropológicos ligados ao mito da "mestiçagem", do mito do "brasileiro cordial" e da imagem glamourizada da pobreza e seus valores simbólicos (prostituição, comércio informal, pirataria etc).

A "mestiçagem", mito trazido por Gilberto Freyre a partir de Casa Grande & Senzala, de 1933, era traduzido, no "popular demais", na perspectiva de promiscuidade de formas comerciais porém rudimentares de "cultura popular", como a música brega-popularesca, mas também da ilusão de que mercado, poder midiático e cultura popular atuavam sem conflitos.

Entende-se como equivalentes ao Cabo Anselmo os setores da intelectualidade, do meio acadêmico e do meio artístico que estavam se comprometendo com a bregalização e atuavam estrategicamente na mídia de esquerda, tentando empurrar para a pauta dos movimentos progressistas a bregalização, que trazia o estranho, porém verossímil aspecto da mitificação da pobreza, do mito da "pobreza linda", do "orgulho de ser pobre", do "ufanismo das favelas", do "empoderamento da prostituição" etc.

Isso tudo toma como carro-chefe o "funk", o ritmo que mais foi beneficiado por essa retórica digna de IPES-IBAD mas servida para a mídia esquerdista. Personificando os estereótipos de classes populares com um discurso pseudo-ativista e pseudo-etnográfico cheio de contradições, o "funk" também pode, por si, ser comparado ao Cabo Anselmo, como movimento financiado pela CIA, através de ONGs patrocinadas pela Fundação Ford e Soros Open Society.

A defesa da bregalização visava evitar duas frentes: a de debates sobre a cultura popular, que em 1964 eram promovidos pelo Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) e a da expressão musical e cultural dos festivais da canção, que se tornaram pontos de resistência à ditadura militar.

Com isso, um grupo de intelectuais orgânicos que incluiu cineastas, jornalistas culturais, antropólogos, historiadores, sociólogos e músicos resolveu, como contraponto ao que eles queriam evitar, defender os fenômenos considerados "cafonas" ou "populares demais", que historicamente fizeram sucesso em contextos sócio-culturais conservadores, como o "milagre brasileiro" da ditadura militar, a Era Geisel e os governos de Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso.

A intelectualidade procurava abafar essa realidade, ignorando tais aspectos e o fato de que os ídolos "populares demais" faziam sucesso por impulso decisivo pela mídia hegemônica, mesmo a regional, ligada a grupos oligárquicos locais. Também se fazia vista grossa para a forma caricatural com que as classes populares eram representadas, e falava-se do "mau gosto" como se fosse uma pretensa causa libertária.

Em muitos casos, o discurso a favor da bregalização apelava para o pretexto da "provocatividade", tomando emprestado clichês do discurso tropicalista da "geleia geral" - a aparente diversidade problemática entre tradições, vanguardas, comercialismos e novidades - tomando emprestada a expressão "periferia" da Teoria da Dependência de Fernando Henrique Cardoso.

Combinando o discurso da "provocatividade tropicalista" com mitos como o da "miscigenação" de Gilberto Freyre - que, atualizado, promovia a mistura de emepebistas e popularescos - e o da "cordialidade" de Sérgio Buarque de Hollanda - cujo principal filho, Chico Buarque, tornou-se símbolo da MPB que os pró-bregas queriam desqualificar - , os intelectuais da bregalização empurravam para as esquerdas a mesma pauta já presente na mídia hegemônica.

O POVO DESVIADO DO DEBATE

O jogo golpista que estava por trás dessa atuação de intelectuais supostamente integrados ao esquerdismo - a ponto deles serem contratados pela imprensa esquerdista - era o de evitar o fortalecimento das classes populares pela cultura, e, defendendo formas caricaturais do comercialismo "popular demais", isolar o povo pobre no entretenimento festivo popularesco.

A bregalização - que também apresenta, como problema, a relação confusa entre colonização cultural dos EUA e o provincianismo das "periferias" - evitou que o povo pobre participasse dos debates públicos, embora o discurso pseudo-ativista que envolvia os brega-popularescos falasse em "discutir os problemas das periferias", como no "funk".

O povo pobre era convencido pelo discurso intelectual, que não era diretamente dirigido ao grande público, mas aos intelectuais de esquerda em geral, "desarmando-os" com o suposto discurso "das periferias", que superestimava aspectos comportamentais em detrimento das causas esquerdistas prioritárias.

Além de colocar causas como o LGBT acima até mesmo de questões salariais, valores machistas como o das mulheres-objetos do "funk" eram tidas tendenciosamente como um "novo tipo de feminismo", sob o pretexto da "liberdade do corpo".

Com esse discurso em que leva a espetacularização e o consumismo acima das lutas pela qualidade de vida, levando em conta, também, que os ídolos "populares demais" poderiam abocanhar verbas estatais pela Lei Rouanet, o povo pobre foi convencido de que "não precisava mais" participar dos debates políticos de seu interesse. Seu "ativismo social" consistiu em seguir como gado a onde seu ídolo popularesco do momento está se apresentando ou aparecendo.

Dessa forma, enquanto o povo pobre se ocupava em rebolar, mostrar seus sorrisos banguelas e seu "mau gosto", os debates que seriam do interesse das classes populares passaram a ser privativos entre os jornalistas, sindicalistas e outros representantes e líderes dos movimentos sociais, que praticamente passaram a falar quase "sozinhos".

Com isso, o povo pobre foi desviado da mobilização social. Em compensação, setores conservadores da classe média eram impulsionados pela mídia hegemônica - não se pode ignorar que as Organizações Globo apoiavam o mesmo "popular demais" que os intelectuais pró-bregas empurravam para a pauta progressista - a se manifestarem contra os governos progressistas, a partir dos protestos contra Dilma Rousseff.

A mobilização que os intelectuais em favor da bregalização negaram sutilmente às classes populares que, feito crianças inocentes, eram empurradas para o consumo do entretenimento "popular demais", a sociedade conservadora a quem esses intelectuais serviam estimulou os jovens mais reacionários a fazer. Não por acaso, apesar do insistente esforço de associar o "popular demais" ao esquerdismo, ele era defendido, nas redes sociais, pelos chamados "sociopatas".

Os "sociopatas", que atuavam no cyberbullying em comunidades do Orkut e Facebook, entre outros portais das redes sociais, passaram a hostilizar o Partido dos Trabalhadores (PT), Lula e Dilma Rousseff.

O jogo golpista se deu com os intelectuais orgânicos da mídia hegemônica - mas em parte atuantes, até hoje, na mídia de esquerda - pedindo para as esquerdas não discutirem sobre cultura popular - as esquerdas que aceitassem, submissas, o "popular demais" que a mídia hegemônica impunha para o povo, sob o rótulo de "cultura das periferias", também criou uma outra intelectualidade orgânica, mais reacionária.

As esquerdas se enfraqueceram enquanto intelectuais inexpressivos que atuam na mídia conservadora eram fortalecidos pelo discurso da "cultura popular de verdade". Era surreal. Intelectuais de esquerda defendiam uma caricata "cultura popular" patrocinada pela mídia hegemônica, sobretudo a Globo e a Folha. Intelectuais de direita que desprezam o povo pobre defendiam uma "cultura popular de verdade" e reclamavam que o povo pobre era explorado de maneira caricata pelo entretenimento.

É por isso que os intelectuais a favor da bregalização, a partir das atuações de Paulo César de Araújo, Pedro Alexandre Sanches e Hermano Vianna, fortaleceram os intelectuais reacionários, como Rodrigo Constantino e Reinaldo Azevedo, através dessa distribuição maluca de narrativas sobre cultura popular, que desnortearam o debate público e permitiram o golpe político de 2016-2018.

Enquanto o povo pobre "descia até o chão", a classe média conservadora ia para as ruas pedir a queda de Dilma Rousseff. A resistência popular foi minada, porque o povo pobre estava distraído com a "alegria" dos ídolos "populares demais". Da perda de mandato de Dilma Rousseff até a prisão de Lula, a retomada conservadora que derrubou as esquerdas contou com a ajuda de intelectuais autoproclamados "amigos dos esquerdistas".

FONTES: Caros Amigos, Carta Capital, Revista Fórum, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica.

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