SUPOSTAMENTE ANTI-GLOBO, LIGA DO FUNK GRAVA REPORTAGEM PARA O FANTÁSTICO, DA MESMA REDE GLOBO.
Por Alexandre Figueiredo
Um fato estranho ocorreu em 2016, o ano do golpe político que levou Michel Temer ao poder. A Liga do Funk, organização de "funk" de São Paulo, participou, no dia 24 de março, de um ato contra a Rede Globo na capital paulista, ao lado de diversas organizações ligadas aos movimentos sociais, sob ocomando da Central Única dos Trabalhadores.
Poucos meses depois de participar da marcha anti-Globo, todavia, a mesma Liga do Funk aceitou participar, juntamente com a equipe do canal Kondzilla - maior divulgador do "funk" no YouTube - , da gravação de uma reportagem para o programa Fantástico, da mesma Rede Globo que foi alvo do protesto, meses atrás. A gravação ocorreu em 20 de julho e o programa foi ao ar em 09 de outubro.
Contradições bastante diversas são praticadas pelo "funk", um ritmo dançante meramente comercial que vende a falsa imagem de "movimento libertário", se valendo de um conjunto discursivo que envolve falácias, meias-verdades e até pensamentos desejosos, que permitem o jogo duplo que seus militantes fazem, se apropriando de movimentos de esquerda visando interesses estratégicos.
As contradições do "funk", que fazem com que o "movimento" forje sua onipresença em atos do Partido dos Trabalhadores e, por outro lado, em entrevistas no programa The Noite, do SBT - comandado pelo humorista Danilo Gentili, famoso por suas opiniões reacionárias, sob o acompanhamento do também reacionário Ultraje a Rigor de Roger Rocha Moreira e cujo patrão, o animador Sílvio Santos, é entusiasta do governo Michel Temer - , o obrigam a adotar uma estratégia.
Pressionados pelo seu entrosamento ao mercado e ao poder midiático, os funqueiros agora utilizam como desculpa a falsa dicotomia apropriação X enfrentamento, tentando se livrar do fardo do vínculo mercadológico e midiático que sempre teve, fazendo a opinião pública se convencer da falsa ideia de que o "funk" é um "movimento independente" que atuava à margem do mercado e da mídia.
ORIGENS NA FLÓRIDA ANTI-CASTRISTA
A própria origem do "funk" no Brasil, inicialmente através do "funk carioca", é estranha para um fenômeno que vende a imagem de "progressista" junto às esquerdas. Sua inspiração está implicitamente relacionada ao miami bass, um ritmo dançante produzido na Flórida, EUA, e ligado a imigrantes cubanos hostis ao governo socialista de Fidel Castro e, depois, de seu irmão Raul.
Além da origem anti-castrista, o miami bass se relaciona a grupos mafiosos e à prostituição, constituindo-se de um mercado sombrio no qual o esquema de jabaculê é sua lógica maior, portanto é um mercado movido pela ganância empresarial e pelos processos duvidosos de formação de ídolos musicais, nos quais a vontade do empresário e do produtor aparecem em primeiro plano.
No Brasil, o "funk" tão cedo buscou o apoio midiático, a princípio em canais de televisão concorrentes da Rede Globo, como a antiga TV Corcovado (hoje Record Rio) e TV Bandeirantes, mas no rádio já "madrugava" suas alianças com as Organizações Globo, arrendando programas na hoje extinta rádio 98 FM, de perfil popularesco.
As relações do "funk" com a CIA - Central Intelligence Agency, órgão de informação ligado ao governo dos EUA - , embora ridicularizadas por setores influentes da opinião pública, é confirmada pelas próprias organizações brasileiras que trabalham com o gênero. Elas seriam financiadas pelas organizações não-governamentais a serviço da CIA, a Fundação Ford e a Soros Open Society.
O antropólogo Hermano Vianna citou a Fundação Ford na lista de agradecimentos de seu livro O Mundo Funk Carioca, baseado na sua tese de doutorado. Consta-se que a Fundação Ford está por trás de financiamentos, intermediados pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), de obras apologéticas do "popular demais" (brega-popularesco).
Entre os livros que teriam recebido patrocínio indireto da Fundação Ford estariam, provavelmente, as obras Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César Araújo, dedicado à música brega dos anos 1970, e Que Tchan é Esse?, de Mônica Neves Leme, sobre o fenômeno É O Tchan e seus derivados. Ambos os livros surgiram de teses de pós-graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), uma das contempladas, entre 2000 e 2003, pelas verbas da Fundação Ford.
FUGA DE RESPONSABILIDADES
O "funk" reproduz, mas num contexto politicamente correto, o esquema sombrio do miami bass. É acusado, por muitos de seus críticos, de ser financiado pelo crime organizado, mas esse patrocínio se limita, a princípio, apenas a uma das vertentes, o "funk proibidão".
Há a precarização do trabalho, no qual há denúncias de manobras dos produtores de "funk" que, para não dar encargos a ídolos emergentes de menor repercussão, chegam a dar a estes, que nem sempre compõem suas próprias músicas, o crédito isolado de autoria dessas músicas, na verdade composições dos próprios produtores que empresariam tais intérpretes.
O caráter comercial também é explícito. Tão explícito que, ultimamente, o "funk" anda sendo trabalhado para penetrar, sem problemas, no mercado do hit-parade dos EUA, com ídolos como Anitta e Ludmilla interagindo com astros do comercialismo pop hispano-americano, principalmente de Porto Rico ou de Estados locais como a Flórida e Nova York.
Mesmo assim, recentemente surgem esforços retóricos para atribuir as relações do poder midiático e mercadológico do "funk" não como uma relação integrada de cumplicidade e interação, como é na realidade, mas pelo aparato conflituoso da "apropriação", atribuída ao mercado e à mídia, e do "enfrentamento", por parte do "funk".
A antropóloga fluminense Adriana Facina, ligada a Hermano Vianna e, portanto, integrante do grupo de antropólogos apadrinhado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, descreve dessa forma, no resumo de seu texto Indústria cultural e precarização do trabalho: o caso do funk, para palestra no XIII Encontro de História da Associação Nacional de História - seção Rio de Janeiro, descreve o seguinte:
"O processo geral de precarização do trabalho é fruto da hegemonia neoliberal que marcou as últimas décadas. Como em qualquer outro ramo da economia capitalista, a indústria cultural também passou por reestruturações que se traduziram em demissões e instituição de novas formas de contrato flexíveis, capazes de atender às demandas da atual fase histórica de acumulação capitalista. No caso do funk, essa lógica é ainda mais aprofundada, pois os artistas são, em sua maioria, provenientes das camadas joves habitantes das periferias e favelas cariocas. A falta de perspectiva que a sociedade que combina desemprego com hiperconsumo gera entre esses jovens, faz com que a carreira no mundo do funk apareça como algo atrativo e, ao mesmo tempo, permite com que os grandes empresários estabeleçam relações de trabalho baseadas na superexploração, na ausência de parâmetros legais (como contratos formais) e na descartabilidade dos artistas. Assim, o mundo do funk se torna um exemplo do enredamento da cultura de massas na lógica global do capitalismo neoliberal".
Em outras palavras, Adriana Facina tenta desvincular o caráter mercadológico do "funk", inerente ao próprio gênero e aos interesses financeiros dos próprios DJs e MCs envolvidos, atribuindo o mercantilismo a fatores externos. Ela esquece que o "funk" é condicionado pelo comercialismo desde as referências midiáticas que formam o repertório ideológico dos seus intérpretes e do público que aprecia o gênero.
Se o foco do aparente questionamento da antropóloga e professora da UFRJ era o mercado, a mídia é o foco de retórica semelhante dada pelo líder da Liga do Funk, Bruno Ramos, em entrevista dada à Revista Fórum, que, sem deixar de mencionar o mercado, enfatiza a mídia que, segundo ele, estaria se "apropriando" da visibilidade do "funk":
"O interesse é visível. A mídia tem interesse na visibilidade que o funk consegue promover, a gente percebe a mobilização, pois são 20 milhões de adeptos da cultura do funk e eles querem utilizar isso como manobra para atrair mais público para os programas televisivos".
Bruno Ramos, que de maneira tendenciosa atribui ao "movimento funk" a idade de 45 anos - na verdade, o "funk", pela atual estrutura do MC e DJ, vem desde 1989, enquanto que de 1972 até antes do "funk carioca", havia o funk autêntico (marcado pela forte presença de músicos e arranjdores) que era uma coisa bem diferente - , acrescenta ao seu comentário:
"O movimento funk acontece há 45 anos e temos um movimento totalmente independente. O rádio e as mídias tocam as coisas, você tem muitos meninos se beneficiando com altos valores no mercado sem ter um vínculo direto com os escritórios de gravadoras".
A narrativa, bastante verossímil, no entanto aponta falhas, pois o "funk", da forma como se conhece hoje, sempre foi movido por interesses comerciais. O fato de haver pequenas gravadoras não indica necessariamente que elas sigam uma filosofia independente nem uma cultura alternativa, sendo apenas pequenos derivados do mainstream tão mercenários quanto os esquemas oficiais do mercado dominante.
O próprio Bruno Ramos entra em contradição, quando descreve as relações do mercado "beneficiando" o gênero. Eventualmente, os defensores do "funk" usam a "geração de empregos" como "escudo" para as críticas, sobretudo quanto ao valor artístico-cultural duvidoso de seus intérpretes e ao caráter discutível de seus temas, voltados ao que a sociedade considera "baixarias" associadas à violência e ao sexo.
PROBLEMAS DISCURSIVOS
O discurso que os militantes do "funk" usam para justificar as relações dúbias junto ao poder midiático e aos movimentos sociais pode apresentar um significativo grau de verossimilhança, mas apresenta sérios problemas quando tais procedimentos são postos em prática.
Um exemplo é a relação apropriação-enfrentamento que os funqueiros fazem com o poder midiático e mercadológico. Essa relação é usada como desculpa para justificar a presença do "funk" nos espaços da mídia hegemônica, sobretudo a Rede Globo, mas também os veículos de outras corporações midiáticas, como a Abril, Folha de São Paulo e o Grupo Bandeirantes.
O discurso sugere uma relação conflituosa que não existe, e mesmo se considerarmos relações meramente formais entre o "funk" e o poder da mídia e do mercado, mesmo assim ela não produz as tensões caraterísticas da relação apropriação-enfrentamento.
Há também aspectos estranhos que indicam, na verdade, uma relação de cumplicidade e não de conflito. Os astros televisivos eleitos "embaixadores do funk" - algo impensável diante do conflito apropriação-enfrentamento - estão associados a um contexto midiático conservador, como a apresentadora Xuxa Meneghel, durante anos a maior estrela da Rede Globo, e Luciano Huck, recentemente cotado como possível presidenciável por setores conservadores da sociedade.
Os dois atuaram de forma decisiva para o crescimento do "funk" e a aliança do gênero com as Organizações Globo tornou-se bastante explícita quando os mais diversos veículos e atrações da corporação da família Marinho, um processo que se tornou intenso entre 2003 e 2005, com personagens funqueiros criados por encomenda em novelas e humorísticos.
O Casseta & Planeta, já no começo de sua guinada conservadora - os humoristas passariam a expressar oposição ao Partido dos Trabalhadores, sendo Marcelo Madureira o mais radical deles - havia criado dois personagens, MC Ferrow & MC Deu Mal, respectivamente interpretados por Hélio de La Peña e Hubert Aranha, que serviam de "escada" para forjar a "superioridade artística" do "funk", através dos ídolos que eram convidados a participar das esquetes.
A "onipresença" do "funk" ia de atrações como o Globo Esporte - que, entre outras coisas, mencionava hinos funqueiros cantados por torcedores de futebol - até veículos como o canal Futura, que certa vez acolheu o funqueiro MC Leozinho num programa apresentado por Jairo Bouer, passando por publicações como Quem Acontece, que dava um tratamento fashion ao gênero. A atuação de Luciano Huck era decisiva para fazer o "funk" repercutir entre jovens de classe média.
Uma gafe foi cometida pela revista Caros Amigos na reportagem "Funk Carioca, o Perseguido", na edição de julho de 2009 do periódico esquerdista. O funqueiro Mr. Catra, um dos astros do gênero, foi definido como um ídolo que "segue invisível aos olhos das corporações midiáticas". A reportagem se esqueceu que o mesmo Mr. Catra já havia aparecido várias vezes no programa Caldeirão do Huck, de Luciano Huck, uma das principais atrações da Rede Globo de Televisão.
O próprio discurso "ativista" e "militante" do "funk", que é muito difundido por organizações como a APAFUNK (Associação de Amigos e Profissionais do Funk) e a Liga do Funk, foi divulgado, antes, por reportagens publicadas no Segundo Caderno de O Globo e na Ilustrada da Folha de São Paulo, pioneiras na narrativa que muitos, de maneira equivocada, atribuem aos movimentos progressistas, já que essa retórica surgiu de dentro do poder midiático.
No caso da Liga do Funk, sua atitude em participar de um ato contra a Rede Globo e depois gravar reportagem para o Fantástico expressa uma grave contradição que a retórica de "apropriação" (da Rede Globo sobre os funqueiros) e de "enfrentamento" (por parte dos funqueiros diante da Rede Globo) não consegue trazer uma explicação coerente.
Dois detalhes estranhos foram observados neste caso. Um é que a Rede Globo acolheu a Liga do Funk, quando a lógica seria boicotar a organização, por ela ter participado de uma marcha contra a emissora. Outro é que a Liga do Funk aceitou participar da gravação, apesar da aparente hostilidade da organização funqueira com a rede de televisão.
As pessoas que questionam o "funk" e que são ligadas aos movimentos progressistas desconfiam de que a Liga do Funk estaria colaborando com as Organizações Globo, atuando como "informante" da empresa dos Marinho dentro dos movimentos sociais.
Por estratégia, Bruno Ramos evita aparecer muito nas entrevistas e reportagens da Globo, só aparecendo conforme o contexto das circunstâncias. Por outro lado, aparece ao lado de Lula e Dilma Rousseff, buscando vínculo de imagem com os dois ex-presidentes. Muitos desconfiam de que lado realmente está Bruno Ramos e a Liga do Funk, e esse lado não está no que as aparências mostram. O som do plim-plim parece bater forte nos corações da "nação funqueira".
FONTES: ANPUH-RIO, Revista Fórum, Caros Amigos, blogues Mingau e Aço e Linhaça Atômica, Wikipedia.
Por Alexandre Figueiredo
Um fato estranho ocorreu em 2016, o ano do golpe político que levou Michel Temer ao poder. A Liga do Funk, organização de "funk" de São Paulo, participou, no dia 24 de março, de um ato contra a Rede Globo na capital paulista, ao lado de diversas organizações ligadas aos movimentos sociais, sob ocomando da Central Única dos Trabalhadores.
Poucos meses depois de participar da marcha anti-Globo, todavia, a mesma Liga do Funk aceitou participar, juntamente com a equipe do canal Kondzilla - maior divulgador do "funk" no YouTube - , da gravação de uma reportagem para o programa Fantástico, da mesma Rede Globo que foi alvo do protesto, meses atrás. A gravação ocorreu em 20 de julho e o programa foi ao ar em 09 de outubro.
Contradições bastante diversas são praticadas pelo "funk", um ritmo dançante meramente comercial que vende a falsa imagem de "movimento libertário", se valendo de um conjunto discursivo que envolve falácias, meias-verdades e até pensamentos desejosos, que permitem o jogo duplo que seus militantes fazem, se apropriando de movimentos de esquerda visando interesses estratégicos.
As contradições do "funk", que fazem com que o "movimento" forje sua onipresença em atos do Partido dos Trabalhadores e, por outro lado, em entrevistas no programa The Noite, do SBT - comandado pelo humorista Danilo Gentili, famoso por suas opiniões reacionárias, sob o acompanhamento do também reacionário Ultraje a Rigor de Roger Rocha Moreira e cujo patrão, o animador Sílvio Santos, é entusiasta do governo Michel Temer - , o obrigam a adotar uma estratégia.
Pressionados pelo seu entrosamento ao mercado e ao poder midiático, os funqueiros agora utilizam como desculpa a falsa dicotomia apropriação X enfrentamento, tentando se livrar do fardo do vínculo mercadológico e midiático que sempre teve, fazendo a opinião pública se convencer da falsa ideia de que o "funk" é um "movimento independente" que atuava à margem do mercado e da mídia.
ORIGENS NA FLÓRIDA ANTI-CASTRISTA
A própria origem do "funk" no Brasil, inicialmente através do "funk carioca", é estranha para um fenômeno que vende a imagem de "progressista" junto às esquerdas. Sua inspiração está implicitamente relacionada ao miami bass, um ritmo dançante produzido na Flórida, EUA, e ligado a imigrantes cubanos hostis ao governo socialista de Fidel Castro e, depois, de seu irmão Raul.
Além da origem anti-castrista, o miami bass se relaciona a grupos mafiosos e à prostituição, constituindo-se de um mercado sombrio no qual o esquema de jabaculê é sua lógica maior, portanto é um mercado movido pela ganância empresarial e pelos processos duvidosos de formação de ídolos musicais, nos quais a vontade do empresário e do produtor aparecem em primeiro plano.
No Brasil, o "funk" tão cedo buscou o apoio midiático, a princípio em canais de televisão concorrentes da Rede Globo, como a antiga TV Corcovado (hoje Record Rio) e TV Bandeirantes, mas no rádio já "madrugava" suas alianças com as Organizações Globo, arrendando programas na hoje extinta rádio 98 FM, de perfil popularesco.
As relações do "funk" com a CIA - Central Intelligence Agency, órgão de informação ligado ao governo dos EUA - , embora ridicularizadas por setores influentes da opinião pública, é confirmada pelas próprias organizações brasileiras que trabalham com o gênero. Elas seriam financiadas pelas organizações não-governamentais a serviço da CIA, a Fundação Ford e a Soros Open Society.
O antropólogo Hermano Vianna citou a Fundação Ford na lista de agradecimentos de seu livro O Mundo Funk Carioca, baseado na sua tese de doutorado. Consta-se que a Fundação Ford está por trás de financiamentos, intermediados pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), de obras apologéticas do "popular demais" (brega-popularesco).
Entre os livros que teriam recebido patrocínio indireto da Fundação Ford estariam, provavelmente, as obras Eu Não Sou Cachorro Não, de Paulo César Araújo, dedicado à música brega dos anos 1970, e Que Tchan é Esse?, de Mônica Neves Leme, sobre o fenômeno É O Tchan e seus derivados. Ambos os livros surgiram de teses de pós-graduação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), uma das contempladas, entre 2000 e 2003, pelas verbas da Fundação Ford.
FUGA DE RESPONSABILIDADES
O "funk" reproduz, mas num contexto politicamente correto, o esquema sombrio do miami bass. É acusado, por muitos de seus críticos, de ser financiado pelo crime organizado, mas esse patrocínio se limita, a princípio, apenas a uma das vertentes, o "funk proibidão".
Há a precarização do trabalho, no qual há denúncias de manobras dos produtores de "funk" que, para não dar encargos a ídolos emergentes de menor repercussão, chegam a dar a estes, que nem sempre compõem suas próprias músicas, o crédito isolado de autoria dessas músicas, na verdade composições dos próprios produtores que empresariam tais intérpretes.
O caráter comercial também é explícito. Tão explícito que, ultimamente, o "funk" anda sendo trabalhado para penetrar, sem problemas, no mercado do hit-parade dos EUA, com ídolos como Anitta e Ludmilla interagindo com astros do comercialismo pop hispano-americano, principalmente de Porto Rico ou de Estados locais como a Flórida e Nova York.
Mesmo assim, recentemente surgem esforços retóricos para atribuir as relações do poder midiático e mercadológico do "funk" não como uma relação integrada de cumplicidade e interação, como é na realidade, mas pelo aparato conflituoso da "apropriação", atribuída ao mercado e à mídia, e do "enfrentamento", por parte do "funk".
A antropóloga fluminense Adriana Facina, ligada a Hermano Vianna e, portanto, integrante do grupo de antropólogos apadrinhado pelo sociólogo Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República, descreve dessa forma, no resumo de seu texto Indústria cultural e precarização do trabalho: o caso do funk, para palestra no XIII Encontro de História da Associação Nacional de História - seção Rio de Janeiro, descreve o seguinte:
"O processo geral de precarização do trabalho é fruto da hegemonia neoliberal que marcou as últimas décadas. Como em qualquer outro ramo da economia capitalista, a indústria cultural também passou por reestruturações que se traduziram em demissões e instituição de novas formas de contrato flexíveis, capazes de atender às demandas da atual fase histórica de acumulação capitalista. No caso do funk, essa lógica é ainda mais aprofundada, pois os artistas são, em sua maioria, provenientes das camadas joves habitantes das periferias e favelas cariocas. A falta de perspectiva que a sociedade que combina desemprego com hiperconsumo gera entre esses jovens, faz com que a carreira no mundo do funk apareça como algo atrativo e, ao mesmo tempo, permite com que os grandes empresários estabeleçam relações de trabalho baseadas na superexploração, na ausência de parâmetros legais (como contratos formais) e na descartabilidade dos artistas. Assim, o mundo do funk se torna um exemplo do enredamento da cultura de massas na lógica global do capitalismo neoliberal".
Em outras palavras, Adriana Facina tenta desvincular o caráter mercadológico do "funk", inerente ao próprio gênero e aos interesses financeiros dos próprios DJs e MCs envolvidos, atribuindo o mercantilismo a fatores externos. Ela esquece que o "funk" é condicionado pelo comercialismo desde as referências midiáticas que formam o repertório ideológico dos seus intérpretes e do público que aprecia o gênero.
Se o foco do aparente questionamento da antropóloga e professora da UFRJ era o mercado, a mídia é o foco de retórica semelhante dada pelo líder da Liga do Funk, Bruno Ramos, em entrevista dada à Revista Fórum, que, sem deixar de mencionar o mercado, enfatiza a mídia que, segundo ele, estaria se "apropriando" da visibilidade do "funk":
"O interesse é visível. A mídia tem interesse na visibilidade que o funk consegue promover, a gente percebe a mobilização, pois são 20 milhões de adeptos da cultura do funk e eles querem utilizar isso como manobra para atrair mais público para os programas televisivos".
Bruno Ramos, que de maneira tendenciosa atribui ao "movimento funk" a idade de 45 anos - na verdade, o "funk", pela atual estrutura do MC e DJ, vem desde 1989, enquanto que de 1972 até antes do "funk carioca", havia o funk autêntico (marcado pela forte presença de músicos e arranjdores) que era uma coisa bem diferente - , acrescenta ao seu comentário:
"O movimento funk acontece há 45 anos e temos um movimento totalmente independente. O rádio e as mídias tocam as coisas, você tem muitos meninos se beneficiando com altos valores no mercado sem ter um vínculo direto com os escritórios de gravadoras".
A narrativa, bastante verossímil, no entanto aponta falhas, pois o "funk", da forma como se conhece hoje, sempre foi movido por interesses comerciais. O fato de haver pequenas gravadoras não indica necessariamente que elas sigam uma filosofia independente nem uma cultura alternativa, sendo apenas pequenos derivados do mainstream tão mercenários quanto os esquemas oficiais do mercado dominante.
O próprio Bruno Ramos entra em contradição, quando descreve as relações do mercado "beneficiando" o gênero. Eventualmente, os defensores do "funk" usam a "geração de empregos" como "escudo" para as críticas, sobretudo quanto ao valor artístico-cultural duvidoso de seus intérpretes e ao caráter discutível de seus temas, voltados ao que a sociedade considera "baixarias" associadas à violência e ao sexo.
PROBLEMAS DISCURSIVOS
O discurso que os militantes do "funk" usam para justificar as relações dúbias junto ao poder midiático e aos movimentos sociais pode apresentar um significativo grau de verossimilhança, mas apresenta sérios problemas quando tais procedimentos são postos em prática.
Um exemplo é a relação apropriação-enfrentamento que os funqueiros fazem com o poder midiático e mercadológico. Essa relação é usada como desculpa para justificar a presença do "funk" nos espaços da mídia hegemônica, sobretudo a Rede Globo, mas também os veículos de outras corporações midiáticas, como a Abril, Folha de São Paulo e o Grupo Bandeirantes.
O discurso sugere uma relação conflituosa que não existe, e mesmo se considerarmos relações meramente formais entre o "funk" e o poder da mídia e do mercado, mesmo assim ela não produz as tensões caraterísticas da relação apropriação-enfrentamento.
Há também aspectos estranhos que indicam, na verdade, uma relação de cumplicidade e não de conflito. Os astros televisivos eleitos "embaixadores do funk" - algo impensável diante do conflito apropriação-enfrentamento - estão associados a um contexto midiático conservador, como a apresentadora Xuxa Meneghel, durante anos a maior estrela da Rede Globo, e Luciano Huck, recentemente cotado como possível presidenciável por setores conservadores da sociedade.
Os dois atuaram de forma decisiva para o crescimento do "funk" e a aliança do gênero com as Organizações Globo tornou-se bastante explícita quando os mais diversos veículos e atrações da corporação da família Marinho, um processo que se tornou intenso entre 2003 e 2005, com personagens funqueiros criados por encomenda em novelas e humorísticos.
O Casseta & Planeta, já no começo de sua guinada conservadora - os humoristas passariam a expressar oposição ao Partido dos Trabalhadores, sendo Marcelo Madureira o mais radical deles - havia criado dois personagens, MC Ferrow & MC Deu Mal, respectivamente interpretados por Hélio de La Peña e Hubert Aranha, que serviam de "escada" para forjar a "superioridade artística" do "funk", através dos ídolos que eram convidados a participar das esquetes.
A "onipresença" do "funk" ia de atrações como o Globo Esporte - que, entre outras coisas, mencionava hinos funqueiros cantados por torcedores de futebol - até veículos como o canal Futura, que certa vez acolheu o funqueiro MC Leozinho num programa apresentado por Jairo Bouer, passando por publicações como Quem Acontece, que dava um tratamento fashion ao gênero. A atuação de Luciano Huck era decisiva para fazer o "funk" repercutir entre jovens de classe média.
Uma gafe foi cometida pela revista Caros Amigos na reportagem "Funk Carioca, o Perseguido", na edição de julho de 2009 do periódico esquerdista. O funqueiro Mr. Catra, um dos astros do gênero, foi definido como um ídolo que "segue invisível aos olhos das corporações midiáticas". A reportagem se esqueceu que o mesmo Mr. Catra já havia aparecido várias vezes no programa Caldeirão do Huck, de Luciano Huck, uma das principais atrações da Rede Globo de Televisão.
O próprio discurso "ativista" e "militante" do "funk", que é muito difundido por organizações como a APAFUNK (Associação de Amigos e Profissionais do Funk) e a Liga do Funk, foi divulgado, antes, por reportagens publicadas no Segundo Caderno de O Globo e na Ilustrada da Folha de São Paulo, pioneiras na narrativa que muitos, de maneira equivocada, atribuem aos movimentos progressistas, já que essa retórica surgiu de dentro do poder midiático.
No caso da Liga do Funk, sua atitude em participar de um ato contra a Rede Globo e depois gravar reportagem para o Fantástico expressa uma grave contradição que a retórica de "apropriação" (da Rede Globo sobre os funqueiros) e de "enfrentamento" (por parte dos funqueiros diante da Rede Globo) não consegue trazer uma explicação coerente.
Dois detalhes estranhos foram observados neste caso. Um é que a Rede Globo acolheu a Liga do Funk, quando a lógica seria boicotar a organização, por ela ter participado de uma marcha contra a emissora. Outro é que a Liga do Funk aceitou participar da gravação, apesar da aparente hostilidade da organização funqueira com a rede de televisão.
As pessoas que questionam o "funk" e que são ligadas aos movimentos progressistas desconfiam de que a Liga do Funk estaria colaborando com as Organizações Globo, atuando como "informante" da empresa dos Marinho dentro dos movimentos sociais.
Por estratégia, Bruno Ramos evita aparecer muito nas entrevistas e reportagens da Globo, só aparecendo conforme o contexto das circunstâncias. Por outro lado, aparece ao lado de Lula e Dilma Rousseff, buscando vínculo de imagem com os dois ex-presidentes. Muitos desconfiam de que lado realmente está Bruno Ramos e a Liga do Funk, e esse lado não está no que as aparências mostram. O som do plim-plim parece bater forte nos corações da "nação funqueira".
FONTES: ANPUH-RIO, Revista Fórum, Caros Amigos, blogues Mingau e Aço e Linhaça Atômica, Wikipedia.
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