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60 ANOS APÓS "CHEGA DE SAUDADE", RIO DE JANEIRO SOFRE DECADÊNCIA

TIROTEIO NA ROCINHA, BAIRRO DA MESMA ZONA SUL QUE OUTRORA HAVIA CRIADO A CULTURA DA BOSSA NOVA.

Por Alexandre Figueiredo

60 anos depois da primeira gravação de "Chega de Saudade", a simbólica canção de Antônio Carlos Jobim e Vinícius de Moraes que soa como um manifesto da Bossa Nova pelo fato da letra propor a ruptura com a fossa e as tristezas amorosas, personificadas pela tal "saudade", o Rio de Janeiro há muito perdeu a modernidade e a beleza que havia no distante ano de 1958.

Se, naquela época, o único fato sombrio daquela época, foi o assassinato da jovem Aída Cúri, de apenas 18 anos, por dois rapazes sob o consentimento de um porteiro - dos três envolvidos, um dos rapazes, Ronaldo, continua atualmente vivo e virou empresário - , isso não impediu que o Rio de Janeiro, em vias de deixar a condição de capital federal, exibisse sua exuberância e beleza.

Em 1958, a canção "Chega de Saudade" foi gravada em um disco de Elizeth Cardoso, cantora em plena ascensão e considerada uma das maiores do Brasil. Ela chamou um violonista baiano, excêntrico e de um talento peculiar e musicalmente muito exigente, chamado João Gilberto. Foi a estreia dele na Bossa Nova, cuja origem é bastante controversa.

Muitos atribuem a origem da Bossa Nova a 1957, através de uma apresentação de samba sessions, com clara influência jazzística, no Colégio Israelita-Brasileiro. Segundo a lenda, uma secretária teria escrito no quadro negro de uma sala o anúncio de uma apresentação de samba sessions feita por uma "turma bossa nova", o que teria sido o batismo do gênero.

Mas a Bossa Nova tem outras origens. Indo mais ao passado, ela remete à canção "Conversa de Botequim" (1935), de Noel Rosa, cujos arranjos antecipavam o ritmo. O parceiro dele no grupo Bando dos Tangarás, Braguinha, que às vezes usava o codinome João de Barro, compôs em 1946, com Alberto Ribeiro, a canção "Copacabana", do antológico refrão "Copacabana, princezinha do mar...", bossanovista numa época dominada por serestas e marchinhas.

Há também artistas considerados precursores da Bossa Nova, como os próprios Tom Jobim e João Gilberto, musicalmente atuantes ainda na primeira metade dos anos 1950. Ou então Billy Blanco, João Donato e Johnny Alf, também ativos nessa época, que já antecipavam o estado de espírito da Bossa Nova carioca, apesar de Billy e João tiverem vindo do distante Norte do Brasil.

De toda forma, a Bossa Nova já tinha "montado" o seu cenário em 1958. A boemia dos três bairros da Zona Sul carioca, Copacabana (que incluiu um barulhento beco na Rua Duvivier, o Beco das Garrafas), Ipanema e Leblon, com seus bares e casas noturnas, agitava a área.

O Jardim Botânico tinha que se contentar, diante das agitações da Zona Sul restante, com as corridas de cavalos no Jóquei Clube e ainda não havia abrigado a sede de uma emissora de TV, que em 1958 estava no papel, a famosa Rede Globo de Televisão.

A Bossa Nova foi um consolo para um Rio de Janeiro que perdeu o posto de capital, para viver seus breves momentos de cidade-Estado (o Estado da Guanabara, entre 1960 e 1975), mas não perdeu a pose, pelo menos por um bom tempo.

Primeiro, porque se tornava um dos principais lugares visitados por celebridades. Segundo, porque parte da vida política brasileira ainda estava na antiga capital, a "velhacap" ou "belacap", enquanto que na nova capital, ou "novacap", Brasília, a "casa" ainda estava para ser arrumada, levando cinco anos após a inauguração (1960) para se estabilizar, já sob a ditadura militar.

A DITADURA E O CLIENTELISMO

Durante anos não só o Rio de Janeiro mantinha destaque pela sua modernidade urbana e pelo seu glamour como símbolo de um país que se afirmava viver os Anos Dourados, que em verdade eram mais uma perspectiva plausível do que uma realidade concreta. Ainda assim, essa perspectiva permitia que avanços significativos fossem feitos.

De mudanças no sistema de transporte coletivo - com a substituição de trolebuses e lotações por ônibus comuns e a renumeração de linhas - à evolução das emissoras de TV, o Rio de Janeiro rivalizava com São Paulo nas transformações do cenário sócio-cultural. Se bem que Niterói, como capital do Estado do Rio de Janeiro, também se esforçava para se evoluir no sentido urbanístico e cultural, já refeita de uma criminosa tragédia que destruiu um circo e dizimou pessoas em 1961.

A ditadura militar fez perder o glamour, mas havia resistência. A dissidência cepecista da Bossa Nova, que buscava raízes musicais populares e temáticas de protesto, reconciliou com o ritmo acusado de alienante e elitista e, juntos, formaram a chamada MPB moderna, encontrando seu espaço de resistência sócio-cultural à ditadura militar nos festivais de música de São Paulo transmitidos por emissoras de TV.

A mentalidade urbana de Rio de Janeiro, São Paulo e Niterói resistiu por um tempo mesmo quando o clientelismo político de Chagas Freitas, já nas vésperas da fusão estadual do Rio de Janeiro e da Guanabara, e de Paulo Maluf, em São Paulo. O eixo Rio-São Paulo tornava-se um polo cultural, enquanto Niterói procurava acompanhar o município vizinho, com o qual passou a estar ligado de maneira mais intensa com a Ponte Rio-Niterói.

Algumas façanhas Niterói realizou, como o radialismo rock da Fluminense FM, cuja programação alternativa, priorizando os clássicos mais antigos de 1982 a 1985 e focalizando o alternativo contemporâneo de 1986 a 1988, nunca foi superada ou igualada por qualquer outra emissora de rádio dos anos 1990 para cá. Outra façanha foi a inauguração do Museu de Arte Contemporânea, obra concebida por Oscar Niemeyer, que simbolizou o fim de uma grande época.

PRAGMATISMO

A década de 1990 representou o declínio dos dois grandes centros do Sudeste e do declínio de Niterói, que passou a resignar de sua inferioridade urbana depois de perder o status de capital do Estado do Rio de Janeiro. A fusão serviu como consolação do Rio de Janeiro ter perdido o status de capital do Brasil, e, se não pôde "comandar" um país, passou a "liderar" um Estado.

Se São Paulo perdeu a imponência se sujeitando ao poder político do PSDB, partido com aparato de modernidade e racionalidade, mas que demonstrou um perfil político bastante conservador, o Rio de Janeiro e, por associação, Niterói, perderam a antiga imponência urbana e cultural por adotarem perspectivas meramente pragmáticas, voltadas apenas a necessidades imediatistas e meramente básicas.

A ascensão de um grupo político conservador, mas de apelo falsamente desenvolvimentista, de Eduardo Paes e Sérgio Cabral Filho, fez o Rio de Janeiro decair em muitos aspectos, da mobilidade urbana ao cenário cultural. No lugar da riqueza artístico-cultural da Bossa Nova, entrou o "funk carioca" com seu retrocesso artístico-cultural, além de um apelo popularesco bastante tendencioso e oportunista.

Comparando a Bossa Nova, com sua instrumental arrojada e seus cantores de alto gabarito, com o amontoado de sons eletrônicos simplórios e confusos, note-se que, através da música, o Rio de Janeiro altivo e criativo perdia o espaço para um Rio de Janeiro confuso, empobrecido e subordinado ao poder político-midiático.

Além disso, desde a ditadura militar e as sucessivas políticas socialmente excludentes, principalmente na área da habitação, fizeram com que o Rio de Janeiro aprofundasse sua decadência, com suas favelas virando praças de guerra entre policiais e favelados, que vitimaram e vitimam tantos inocentes.

Recentemente, tiroteios violentos acontecem na favela da Rocinha, um subúrbio dentro de uma Zona Sul que tentou remover favelas nos entornos da Lagoa e Humaitá. Na Zona Sul, a Rocinha, o Vidigal e o Pavão-Pavãozinho, este entre Copacabana e Lagoa, dão um aspecto de Zona Norte à Zona Sul, na ironia das elites terem reivindicado o fim das linhas de ônibus diretas entre as duas zonas.

A Rocinha isola a Zona Sul da Zona Oeste, na parte da Barra da Tijuca. A violência impede as pessoas de percorrerem a Auto-Estrada Lagoa-Barra e, ainda que ocorra em área distante dos principais bairros da Zona Sul, oferece um quadro sombrio para a área, que, 60 anos após a Bossa Nova, mais parece um triste melodrama com a trilha sonora precária e culturalmente duvidosa do "funk".

FONTES: O Globo, Dicionário Cravo Alvim, O Dia, Blogue Linhaça Atômica, UOL, Carta Capital.

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