Por Alexandre Figueiredo
Em 01º de setembro de 2009, um ritmo comercial, cujos aspectos sócio-culturais são bastante confusos e contraditórios, ainda que se ocultem as relações verticais entre indústria e público consumidor, foi declarado "movimento cultural de caráter popular" através do anúncio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
Nesse evento, no qual se viam entidades ligadas ao "funk carioca" e personalidades relacionadas - de artistas solidários como a cantora Fernanda Abreu até DJs como Marlboro e Rômulo Costa, além do presidente da APAFUNK (Associação de Profissionais e Amigos do Funk), MC Leonardo e o antropólogo Hermano Vianna - , causou muita movimentação no Centro do Rio.
Na altura da Av. Pres. Antônio Carlos, em frente ao prédio que chegou a ser da Câmara dos Deputados quando o Rio de Janeiro era capital do Brasil e hoje abriga a ALERJ, funqueiros estavam reunindo com faixas com expressões como "funk é cultura" e outros lemas relacionados.
O episódio vêm à tona porque, na época, a casa era presidida por Jorge Picciani e outro parlamentar da casa, Paulo Melo, hoje presos, ainda que de maneira controversa e juridicamente duvidosa, pela Operação Lava Jato.
Os dois deram respaldo à reunião que decidiu pela decisão que favoreceu o "funk" de maneira político-econômica, permitindo ao gênero o uso tendencioso de verbas estatais para seus eventos, pois o ritmo já conta com forte apoio de empresas privadas. Paulo Melo é autor de uma das propostas que transformam o "funk" em "movimento cultural".
Na reunião, nomes como o deputado Marcelo Freixo, do PSOL carioca, Hermano Vianna e MC Leonardo estiveram na plenária da ALERJ, fazendo discursos. Aleixo chegou a usar clichês evocados por funqueiros: "Não tem por que calar o funk porque é som de preto e favelado que quando toca ninguém fica parado".
O ponto positivo é a reprovação da criminalização do "funk", pois mesmo um ritmo de caráter comercial e voltado ao consumismo musical não merece essa lamentável condição. Ela foi dada depois que o ex-chefe da Polícia Civil Álvaro Lins criou uma lei em 2008, estabelecendo restrições à realização de "bailes funk" e raves no Estado do Rio de Janeiro. Álvaro foi preso, meses depois, por acusações de formação de quadrilha, lavagem de dinheiro e outros crimes.
A lei de Álvaro Lins - que trabalhava para o governo de Rosinha Garotinho, hoje também presa - , de 27 de maio de 2008, foi revogada na ocasião da reunião, no começo de setembro de 2009. Dois projetos de lei de Marcelo Freixo foram postos em votação.
O primeiro deles propõe que o "funk" passe a ser apreciado por órgãos governamentais de cultura, e foi feito em parceria com Wagner Montes (conhecido apresentador de TV), então do PDT e hoje no PRB. O segundo, em parceria com Paulo Melo, do PMDB, revogava as restrições às realizações de eventos de música eletrônica e "bailes funk".
A votação dos parlamentares teve resultado unânime e os presentes comemoraram cantando e dançando o "Rap da Felicidade", de MC Cidinho & MC Doca (do refrão "Eu só quero é ser feliz..."). O texto publicado depois no Diário Oficial, após a sanção do governador Sérgio Cabral Filho no dia 22, foi o seguinte:
"LEI Nº 5543, DE 22 DE SETEMBRO DE 2009.
DEFINE O FUNK COMO MOVIMENTO CULTURAL E MUSICAL DE CARÁTER POPULAR.
O GOVERNADOR DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1º Fica definido que o funk é um movimento cultural e musical de caráter popular.
Parágrafo Único. Não se enquadram na regra prevista neste artigo conteúdos que façam apologia ao crime.
Art. 2º Compete ao poder público assegurar a esse movimento a realização de suas manifestações próprias, como festas, bailes, reuniões, sem quaisquer regras discriminatórias e nem diferentes das que regem outras manifestações da mesma natureza.
Art.3º Os assuntos relativos ao funk deverão, prioritariamente, ser tratados pelos órgãos do Estado relacionados à cultura.
Art. 4º Fica proibido qualquer tipo de discriminação ou preconceito, seja de natureza social, racial, cultural ou administrativa contra o movimento funk ou seus integrantes.
Art.5º Os artistas do funk são agentes da cultura popular, e como tal, devem ter seus direitos respeitados.
Art. 6º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Rio de Janeiro, 22 de setembro de 2009.
SERGIO CABRAL
Governador"
Por ironia, nos últimos dias Sérgio Cabral Filho, Paulo Melo, Jorge Picciani, Rosinha Garotinho e seu marido Anthony Garotinho estão presos, embora dentro do método coercitivo que a Operação Lava Jato faz à revelia da lei, sem direito de defesa nem de se mantiverem em privacidade enquanto presos.
Com atitude abusiva de puro sensacionalismo e com o objetivo de promover o "linchamento simbólico" da opinião pública, o programa Fantástico, da Rede Globo de Televisão, no último dia 26 de novembro, mostrou imagens dos cinco acusados presos numa cadeia do Rio de Janeiro.
EXAGEROS E FALHAS
A mídia exagerou e anunciou que o "funk carioca" virou "patrimônio cultural", uma interpretação equivocada do que aconteceu. É certo que este boato empolgou os fãs e defensores do "funk", mas a verdade é que o ritmo foi reconhecido oficialmente como "movimento cultural e musical de caráter popular", não tendo o status de "patrimônio" como se observa nos bens contemplados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Como um ritmo comercial, no qual se estabelecem relações sociais não de caráter horizontal, como nos movimentos culturais autênticos, mas de caráter vertical, hierarquizado, envolvendo jogos de interesses de empresários do "funk", inclusive DJs, ídolos musicais e outros agentes envolvidos em objetivos de caráter econômico e publicitário, há muitos problemas em torno de atribuir ao "funk" a condição de "patrimônio cultural".
É tendencioso afirmar, mas muitos o fazem com insistência preocupante, que o "funk", pelas suas caraterísticas comerciais, se expressa meramente pelo convívio comunitário de seus consumidores. Isso cria sérios problemas, por criar um jogo de cena etnográfico e sociológico no qual se ocultam relações de mercado que envolvem decisões hierárquicas, interesses tendenciosos etc.
Não há uma clara diferença, para a maioria das pessoas, entre o que é música comercial e o que é música não-comercial. Essa classificação não se refere ao mero processo de cantores, músicos e outros agentes ganharem dinheiro ou registrarem material em gravadoras, mas nos interesses de lucro que prevalecem sobre a produção artística que definem o caso da música comercial.
Na música não-comercial, embora houvesse a questão do lucro, da administração de carreiras e de todo um processo industrial que envolve gravação de disco, realização de apresentações musicais e aparições em TVs e rádios, não se estabelece os objetivos econômicos como fins em si mesmo, pois a finalidade social e artística do intérprete ou compositor, como, por exemplo, o cantor Djavan e, no passado, a banda Legião Urbana, prevalecem sobre as condições de comercialização e renda.
No caso do "funk", prevalecem os interesses comerciais de DJs, intérpretes vocais (os MCs) e os dançarinos. A finalidade explícita é o mero entretenimento e o consumismo, de forma que o ritmo foi formado sob um rigor estético sonoro quase inflexível. Desde os primórdios do "funk" em 1990, uma mesma fórmula sonora é usada por diferentes intérpretes para fazer seu vocal e sua letra.
O som se limita apenas a batidas e efeitos sonoros bastante repetitivos, e os intérpretes também são invariáveis na sua expressão vocal. A diferença entre os intérpretes remete mais à imagem fetichizada de cada um deles do que de alguma questão de estilo ou personalidade artística.
O próprio problema que põe em xeque a reputação do "funk" associada à "expressão cultural" é que, diferente do que a cultura popular autêntica faz, que se transforma naturalmente com o tempo, o "funk" só muda conforme as conveniências do momento e se contradiz quando afirma que seus valores retrógrados, como o machismo e a apologia à pobreza, são "reflexo da realidade".
Essa justificativa dos defensores do "funk" desmascara sua pretensão "cultural", porque a cultura popular autêntica não se proclama "produto" da realidade vivida, mas antes uma forma de intervenção dessa realidade, coisa que o "funk" demonstrou não ter coragem de fazer.
TÍTULO DADO POR CRITÉRIOS POLÍTICO-ECONÔMICOS
O título de "movimento cultural e musical de caráter popular" do "funk" foi dado por motivos político-econômicos. Embora o título rompesse com a imagem criminalizada que setores da sociedade têm do ritmo, ele não se deu pelo valor artístico-cultural nem pela importância etnográfica, que se observa serem bastante duvidosas vide os problemas acima mencionados.
Além do mais, o "funk" é um ritmo muito recente, iniciado desde 1989, conta com uma historiografia tão precoce quanto confusa, no qual interesses empresariais, relações com o poder midiático e objetivos mercadológicos que praticamente sufocam qualquer intenção artística, por mínima que seja, só permitindo mudanças e ousadias conforme as conveniências do momento.
Um exemplo disso é o fato de que os MCs não podiam tocar instrumentos, nos primórdios do "funk". A relação era hierarquizada, geralmente um DJ e empresário recebendo MCs e dando o microfone a eles, sob uma única estrutura sonora.
Apesar de tantas comparações com o samba, nota-se que, no caso deste ritmo de origem africana, havia uma ampla variedade de instrumentos percussivos e, depois, a inserção de instrumentos de origem europeia como o violão e o cavaquinho, além de instrumentos de sopro como a flauta e o clarinete, criando uma série de derivados que vão do maracatu ao chorinho.
O "funk" apenas tem duas variações, o "funk" propriamente dito e o "funk melody", este absorvendo elementos do pop dançante europeu e de leituras comerciais do freestyle de Miami, misturados com outros elementos trazidos pelo brega pop de Odair José.
Fora o "funk melody", popularizado atualmente por Anitta e Ludmila (ex-MC Beyoncé), o "funk" se divide em "de raiz", "comercial", "proibidão" e a cena paulista do "funk ostentação", que apresentam poucas e tendenciosas variações sonoras, e, mesmo assim, ao "gosto do freguês". Há ainda o "funk de DJ", no qual o DJ é o intérprete de mixagens feitas para turista ver, que soam como arremedos de música eletrônica.
Quanto aos critérios usados para o título de "movimento cultural e musical de caráter popular", que muitos, em equivocado exagero, entendem como "patrimônio cultural", não é possível obter tal status através dos critérios técnicos adotados pelo IPHAN, que exigem um longo levantamento de dados e uma precisão de informações de âmbito sociológico e antropológico.
É insuficiente apelar para o lobby que existe entre sociólogos, antropólogos e historiadores que tentam "etnicizar" a chamada "cultura de massa", porque isso ignora o problema das relações de mercado que fazem com que boa parte dos sucessos musicais "do povão" sejam, na verdade, um patrimônio dos escritorios das gravadoras, da grande mídia ou das empresas de entretenimento.
Com essas falhas todas, pode-se admitir que a ALERJ brincou de ser IPHAN naquele começo de setembro de 2009. Diante das limitações institucionais, o "funk" só pôde ser considerado "movimento cultural e musical de caráter popular", sem o status técnico de "patrimônio cultural", apesar desta denominação ter se espalhado por muitas notas na grande imprensa.
Sabe-se que o título de "patrimônio cultural" só pode ser obtido através de parecer de órgãos federais (IPHAN) e suas superintendências regionais, ou então por órgãos locais de patrimônio (como o paulista Condephaat, Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico). A ALERJ é apenas uma casa legislativa, mas sem os atributos específicos competentes aos órgãos dedicados ao patrimônio da cultura brasileira.
FONTES: Rolling Stone, Último Segundo, G1, ALERJ.
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