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INTELECTUAIS PRÓ-BREGA QUERIAM EVITAR REPETIR CENÁRIO DE 1965

HILÁRIA MANIFESTAÇÃO CONTRA A GUITARRA ELÉTRICA EM 1967 FORTALECIA O VERDADEIRO DEBATE DA MPB NO COMEÇO DA DITADURA MILITAR.

Por Alexandre Figueiredo

A blindagem de intelectuais pela bregalização da música brasileira tem pouco mais de 15 anos. Ela se arrefeceu tanto pelos comentários negativos que rendeu de muitas pessoas quanto da consolidação da música brega-popularesca, o comercial-popular radiofônico e televisivo, que dispensava a necessidade das pregações, pelo menos com a intensidade que tiveram antes.

Embora a intelectualidade pró-brega estivesse vinculada, de maneira tendenciosa e condicionada, pela Era PT (governos Lula e Dilma Rousseff), sua atuação remete ainda ao segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, por volta de 2000-2001. Ela coincide com o aumento do desgaste do presidente e sociólogo em seu segundo mandato.

Em 2000, foi lançado o livro Eu Não Sou Cachorro, Não, do historiador Paulo César Araújo, como tentativa de dar um status "mais nobre" ao comercialismo musical de raiz, os primórdios da música cafona dos anos 1960-1970. Em 2001, foi a vez da jornalista Bia Abramo escrever o artigo "O funk e a juventude pobre carioca" para a revista Teoria e Debate.

Eram ações isoladas, mas mostravam a tendência de uma parcela de intelectuais, que não estão necessariamente comprometidos com o folclore das classes populares. Alguns são apenas jornalistas culturais gerais, como Bia Abramo e Pedro Alexandre Sanches, que seguem uma linhagem vinda nos anos 80, restrita ao rock paulistano, à MPB do movimento Lira Paulistana e a abordagens dos medalhões da música brasileira e estrangeira.

Junto a eles, acadêmicos que até estudavam as expressões mais artísticas da música brasileira, como Milton Moura, na Bahia, e o carioca Rodrigo Faour, mas eles, talvez buscando visibilidade e investindo numa postura polêmica de aparente provocatividade, resolveram acolher a bregalização musical, supostamente valorizando a "verdadeira cultura popular".

Mais parecendo um modismo do que um aperfeiçoamento de abordagem fenomenológica, os intelectuais que defendem a bregalização cultural, e que comandaram um discurso que prevaleceu na grande mídia e forçou uma suposta unanimidade nos meios artísticos e acadêmicos durante cerca de 15 anos, acabaram por abrir caminho para a radicalização do comercialismo musical brasileiro.

Antes de mais nada, porém, esses intelectuais pareciam ter um propósito: evitar que se articulasse um cenário de música brasileira de qualidade como houve durante os primeiros anos da ditadura militar, através dos festivais de Música Popular Brasileira, entre 1965 e 1967.

Não se fala aqui tão somente de uma MPB de inspiração bossanovista e comandada por artistas de classe média e formação universitária, mas também da música de raiz que estes mesmos artistas buscavam divulgar e resgatar para a apreciação do grande público.

Por outro lado, havia também a apreciação das influências internacionais, como no rock, embora a própria Bossa Nova tivesse assimilado influências do jazz e dos standards (música romântica e dançante dos filmes de Hollywood que combinava o jazz da linha dixieland com os musicais da Broadway), dentro de uma perspectiva que, já na década de 1920, era definida pelo modernista Oswald de Andrade como "antropofagia cultural".

Abre-se um parêntesis sobre o conceito de "antropofagia" que vem das crenças de algumas tribos indígenas brasileiras. Nelas, se acreditava que, devorando vivo um inimigo capturado e morto, se absorvia as forças dele. Em sentido metafórico, a "antropofagia cultural" seria uma forma de absorver as expressões culturais estrangeiras que seriam adaptadas de maneira peculiar pela cultura brasileira.

O grande problema é que o discurso dos intelectuais que defendem a bregalização cultural tentavam usar Oswald de Andrade para justificar a "americanização" das tendências brega-popularescas. Até porque é um equívoco atribuir a elas uma "antropofagia cultural", porque o elemento estrangeiro é imposto pelo mercado e pelo poder midiático, não sendo uma assimilação espontânea por parte do criador artístico.

CARICATURA DE POVO POBRE

O que está em jogo no discurso da bregalização cultural é que o povo pobre era abordado de maneira bastante caricatural, quase que uma reprodução na vida real dos estereótipos trabalhados nos humorísticos de televisão.

O que chama a atenção no discurso que se observava em autores como Paulo César Araújo, Hermano Vianna, Pedro Alexandre Sanches, Milton Moura e outros era uma idealização das classes populares através de um etnocentrismo acadêmico, que procurava dissimular tais intenções alegando defenderem a "verdadeira cultura popular" e a "autêntica MPB".

Também é notório que neste discurso prevaleceu o apelo do "combate ao preconceito", um termo tomado emprestado dos noticiários sobre apartheid na África do Sul. Chegou-se até a falar no "combate ao apartheid cultural" mas essa utopia se deu nivelada por baixo: não eram as classes pobres que teriam acesso a expressões musicais de valor, mas as classes mais esclarecidas (confundidas com as mais ricas) que teriam acesso a expressões comerciais e popularescas.

A ideia de "combate ao preconceito" era bem elaborada, mas expressa seu tom de demagogia e até de certa hipocrisia, porque esse apelo se relacionava à aceitação de uma abordagem das classes pobres que já era carregada de preconceito, devido a uma imagem ao mesmo tempo ingênua, arrivista, vitimista e até abobalhada do povo pobre.

Na verdade, um outro apartheid cultural era promovido, de maneira até mais radical do que a que ocorria nos tempos da ditadura militar focalizados por Paulo César Araújo, entre 1970 e 1978. Enquanto os ídolos cafonas, nesse período, eram apreciados pelas populações das zonas rurais e suburbanas, a MPB de qualidade era apreciada pela classe média e pelas elites abastadas.

No período de amplo proselitismo ideológico em favor da música brega-popularesca, entre 2000 e 2015, o "novo apartheid" seria ainda mais radical, isolando não apenas a MPB pós-Bossa Nova entre o público mais elitista possível, mas até mesmo os antigos movimentos musicais das classes pobres que seriam, quando muito, apreciados apenas por "especialistas" e "saudosistas".

Exemplo disso era o samba dos morros cariocas, o samba de raiz que, ameaçado de esquecimento, era revalorizado pelos ativistas culturais da virada das décadas de 1950 e 1960. Ultimamente, enquanto as classes populares cariocas praticamente tinham acesso mais fácil ao samba caricato do "pagode romântico" produzido a partir dos anos 1990, o samba de raiz tinha acesso cada vez mais restrito ao povo pobre, sendo mais apreciado pelas elites Zona Sul que no passado optavam pela Bossa Nova.

Enquanto as classes pobres abriam mão de suas identidades musicais para assimilar o "popular" radiofônico de emissoras FM populares, em termos de audiência, mas controladas por famílias oligárquicas, não raro com membros que exercem atividades políticas, o discurso intelectual fazia vista grossa disso, falando numa falsa e improcedente "autossuficiência das periferias", um mito que esconde a realidade da dominação do mercado de música popular.

O que o discurso intelectual fazia era o mascaramento. A música brasileira associada às classes populares era, na verdade, privatizada. Não havia mais artistas populares como Luís Gonzaga, Jackson do Pandeiro e Cartola, mas fetiches musicais promovidos a ídolos midiáticos, produzindo músicas de gosto duvidoso, calculadas conforme interesses mercadológicos.

O poder midiático que sustenta essa "música popular demais" também era mascarado: a figura do dono da rádio "desaparecia" do discurso dos intelectuais pró-brega, que superestimavam o papel do gerente artístico de rádio, o coordenador de programação, transformado em "herói" e tendo oculta sua função de subordinado do dono da rádio. Assim, a "rádio mais popular" só apresentava, no discurso intelectual, apenas dois responsáveis: o gerente artístico e o programador.

Era um discurso que era feito para transformar um mero comercialismo musical, trazido por tendências musicais caricaturais, moldadas à maneira do pop estadunidense mas com maior ou menor arremedo de brasilidade - o "funk", por exemplo, é mais estrangeirizado, ao passo que o "pagode romântico" tenta emular elementos banalizados do samba original - , em algo que fosse visto como "genial", "libertário" e "etnográfico".

O "funk" era o carro-chefe do proselitismo intelectual, pela representação que se faz das classes pobres, permitindo uma retórica ao mesmo tempo verossímil e apelativa, como um suposto ativismo social e uma pretensa rebelião comportamental.

Assim como no brega dos anos 1960-1970, o "funk" também se apropriava da retórica tropicalista da "polêmica" e da "provocação", procurando fazer esquecer que, pelo menos, a Tropicália buscava uma relevância artística mais genuína e orgânica, do contrário que se via nos ídolos cafonas e nos funqueiros, que personificavam uma concepção musical e comportamental mais comerciais, bem menos provocativas que se pensa e nem de longe libertárias.

INTERESSES DE MERCADO

Há muitos interesses em jogo nessa fase de proselitismo intelectual, que continua ocorrendo mas se tornou mais raro nos últimos anos. Em primeiro lugar, pela reação da opinião pública contra o "mau gosto musical". Em segundo, porque o mercado se consolidou com o discurso intelectual de forma que a campanha pela bregalização cultural não precisasse mais ser feita, porque atingiu seu objetivo.

A bregalização hoje é representada pelo "funk" mais light de Anitta, Ludmila e Nego do Borel, pelo "forró eletrônico" de Wesley Safadão e por inúmeros nomes do "sertanejo universitário", dos quais já se destaca também uma cena feminina, de nomes como Marília Mendonça e Simone e Simaria.

Quanto aos intelectuais, eles tiveram o apoio da mídia corporativa, até pelo fato de que a "cultura popular", não apenas musical, mas também comportamental, representava interesses dos grupos mercadológicos envolvidos, como empresas de entretenimento, rádios, imprensa e TV, e, mais recentemente, a Internet.

Porém, esses intelectuais buscavam cortejar as esquerdas visando sabotar os debates culturais, evitando assim que se apele para o mesmo quadro da MPB dos festivais dos anos 1960, em que a cultura musical de qualidade ameaçou o poder das elites dominantes envolvidas com a ditadura. Além disso, o suposto vínculo ao esquerdismo era feitp pelos intelectuais pró-brega visando faturarem verbas públicas dos governos do PT, através de recursos da Lei Rouanet.

A defesa da bregalização cultural tornou-se, portanto, um golpe cultural articulado por elites de jornalistas culturais, historiadores, antropólogos, cineastas e outros produtores culturais que queriam fazer manter e se firmar uma pretensa cultura popular, que reduzisse o povo pobre a uma caricatura, minimizando assim seu caráter ativista que ofereceria risco ao poder das elites.

A ideia de preferir ver o povo pobre resignado com sua "linda pobreza", através do ideal do "orgulho de ser pobre" simbolizado, acima de tudo, pelo "funk", do que lutando pela reforma agrária e ameaçando os projetos de corporações capitalistas, revela o quanto os intelectuais que lutavam por um Brasil mais brega atendiam a interesses comerciais e políticos diversos.

O maior prejuízo com isso foi que a cultura musical brasileira de qualidade ficou relegada a segundo plano. Mesmo os esforços para recuperar a MPB autêntica, que perde até seus próprios espaços de expressão - invadidos por ídolos popularescos sob a desculpa do "fim do preconceito"- , são frágeis, perdidos em eventos revivalistas e na formação superficial de talentos mais recentes, reduzidos a um sub-Tropicalismo inócuo, sem verdadeira renovação musical.

FONTES: UOL, Caros Amigos, Carta Capital, Revista Fórum, Veja, O Globo, Teoria e Debate, Blogue Mingau de Aço, Blogue Linhaça Atômica.

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