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100 ANOS DO SAMBA NO CONTEXTO DA CRISE DA MPB


Por Alexandre Figueiredo

Há cem anos, no dia 27 de novembro de 1916, era gravado o primeiro samba brasileiro. Era a música "Pelo Telefone", composição de Ernesto dos Santos, o Donga e do jornalista Mauro de Almeida, que tardiamente recebeu o crédito da co-autoria, e foi gravada em disco pela Casa Edison e lançada pela Odeon (hoje divisão EMI da Universal Music).

A canção teve como intérprete o cantor Manuel Pedro dos Santos, o Baiano (Bahiano, segundo a grafia anterior à reforma ortográfica de 1943), nascido em 1870 na mesma Santo Amaro da Purificação que, mais tarde, revelou os cantores Caetano Veloso e Maria Bethânia.

A música "Pelo Telefone" - que as gerações mais novas conhecem como citação incidental na música "Pela Internet", de Gilberto Gil - tem uma história curiosa e cheia de controvérsia. Surgiu de uma música cantada na roda de samba da Tia Ciata, no bairro da Penha, Rio de Janeiro.

Na reunião, cantava-se uma música intitulada "Roceiro" e estavam presentes nomes como João da Baiana, Pixinguinha, Caninha, Hilário Jovino Ferreira e Sinhô. A letra original dizia: "O chefe da folia/ Pelo telefone / Mandou me avisar / Que com alegria / Não se questione / Para se brincar", sendo uma paródia do texto escrito pelos jornalistas do periódico A Noite.

Era uma criação coletiva, o que deu uma enorme polêmica em relação à autoria da canção. Na versão gravada em disco, a letra mudou para "O Chefe da Polícia / Pelo telefone/ Manda me avisar/ Que na Carioca / Tem uma roleta/ Para se jogar". A omissão da co-autoria de Mauro de Almeida, segundo depoimento de Donga, teria sido feita pelos executivos da Odeon.

Outro ponto controverso é que, na verdade, a música "Pelo Telefone" não foi gravada com arranjo literalmente de samba, mas de lundu, um derivado do samba no qual se destacam mais instrumentos como piano, violão e viola. Evitou-se o uso de instrumentos percussivos pelo preconceito que a sociedade da época tinha contra eles, associados à práticas de umbanda, então hostilizadas e reprimidas pela polícia.

Sendo assim considerado, a música "Pelo Telefone" segue a linha de outra música gravada em disco, o lundu "Isso é Bom", de Xisto Bahia, que foi o primeiro disco de música brasileira que se tem conhecimento, gravado em 1902 pela mesma Casa Edison e cantada pelo mesmo Baiano.

Eram os primórdios do registro fonográfico da Música Popular Brasileira, dentro de uma época em que a cultura popular brasileira começava a receber maior atenção de intelectuais e pesquisadores, no Brasil que havia tardiamente declarado extinto o trabalho escravo (ou, se não extinto, ao menos ilegal) nos últimos anos do século XIX.

Ainda era um tempo em que predominava a chamada "cultura ilustrada", reflexo da influência galicista (francesa) nas elites culturais cujo primeiro grande feito foi a fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897, por personalidades literárias ilustres na época, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e Olavo Bilac.

O auge do parnasianismo e seu posterior declínio representaram um processo em que o Brasil começava a reconhecer a importância da cultura das classes populares. O samba, um dos ritmos integradores do povo pobre brasileiro, com manifestações nas zonas rurais, suburbanas e urbanas do Norte, Nordeste e Sudeste brasileiro, havendo também expressões no Sul, simboliza musicalmente essa realidade.

Com rodas de samba reprimidas pela polícia, o samba, hoje considerado patrimônio histórico pelo IPHAN, teve que recorrer não só a proteção de pessoas dotadas de respeitabilidade social na época, como a cozinheira Tia Ciata, como também à organização de escolas de samba, para mostrar à sociedade moralista da época que o ritmo de origem africana não incitava a desordem social.

Com o tempo, o samba puxou todo o apelo para o reconhecimento da cultura popular, permitindo também as atenções intelectuais a outras expressões regionais mais entranhadas. como a música caipira e o baião.

Eventos como a Semana de Arte Moderna de 1922 e a Era de Ouro do Rádio, nos anos 1940, permitiram que se difundisse a música popular, em paralelo a outras modalidades culturais populares que expressavam uma identidade brasileira diversificada, genuína e orgânica, pois, por mais comercializada que fosse em programas de rádio, exposições de arte, feiras literárias e indústria fonográfica, entre outros meios, a cultura popular tinha um vínculo social profundo com seu povo.

Isso é muito diferente do que, com o tempo, os ventos políticos fizeram, quando, sob a desculpa da "universalidade" ou da "modernização" cultural, a influência estrangeira deixou de ser um processo horizontal, assimilado ao gosto do ouvinte e aspirante a artista, e passou a ser uma imposição midiática e mercadológica da "indústria do sucesso".

A bregalização cultural, primeiro, criou uma "americanização" muito diferente do que acusavam ter sido a Bossa Nova, porque esta, sem a menor intenção em substituir o samba dos morros, apenas sinalizava para uma outra linguagem, assimilando o jazz e os standards da música romântico-popular de Hollywood (Frank Sinatra, Julie London etc).

"AMERICANIZAR" A CULTURA DO POVO POBRE E "DEVOLVER" AS RAÍZES CULTURAIS NA FORMA DE PASTICHES

A "americanização" da música cafona, depois denominada brega e, mais tarde, considerada música brega-popularesca ou Música de Cabresto Brasileira, foi imposta de maneira enérgica para o grande público, primeiro nas regiões rurais e suburbanas pelas emissoras de rádio controladas por oligarquias regionais.

A ideia era primeiro forçar a assimilação de uma "americanização" mais radical, com pastiches de boleros e o mais pueril rock italiano dos anos 1960, fonte para a vertente "roqueira" dos ídolos cafonas e já calcado em nomes como Paul Anka, Pat Boone e Ricky Nelson, entre outros, de maneira a forçar o desvínculo das classes populares com suas raízes culturais.

Deste modo, o poder midiático das oligarquias que controlam rádios, imprensa e TV - mais tarde elas teriam até canais próprios no YouTube - só "retomaria" as raízes culturais como pastiches moldados ao sabor de interesses comerciais.

Com isso, o samba foi o primeiro a ser experimentado por este pastiche, através da deturpação de uma fusão entre samba e ritmos estrangeiros como jazz, rock e soul que haviam sido feitos de maneira criativa no começo dos anos 1960, com Jorge Ben (hoje Jorge Ben Jor), Orlandivo e outros, o samba-rock.

O "sambão-joia" está para o sambalanço ou samba-rock assim como o rock comportado de Pat Boone está para os primórdios do rock'n'roll de Bill Haley, Chuck Berry, Elvis Presley e outros. O ritmo deturpado, sem a criatividade vibrante do sambalanço original, tornou-se uma das trilhas sonoras do ufanismo da ditadura militar, numa clara associação da bregalização com um contexto sócio-político conservador.

Depois vieram outras diluições, que deturparam até mesmo assimilações espontâneas que mais tarde seriam reduzidas a fórmulas caricaturais de modismos comerciais. O carimbó do Pará, por exemplo, começava a se fundir com ritmos caribenhos, também assimilados na Bahia juntamente com o frevo pernambucano e misturados com os ritmos afro-baianos, e, no entanto, receberam depois formas deturpadas que deram no "forró eletrônico" do Norte e Nordeste e na axé-music baiana.

As deturpações se tornaram mais intensas nos anos 1990, quando o samba e a música caipira foram explorados como pastiches, através do "pagode romântico" e do "sertanejo", simbolizando o cenário conservador da Era Collor e, nos últimos anos, simbolizando a retomada ultraconservadora com a revalorização do brega-popularesco daquela época, que retornou numa combinação de cultura trash com politicamente correto.

O "pagode romântico" - cujos grupos e cantores, quando muito, apenas fazem uma imitação tecnicamente correta do samba, mas sem conhecer direito toda a dinâmica cultural do ritmo - tornou-se hegemônico de tal forma que o samba foi barrado das rádios "populares", numa redução tão drástica que, do samba autêntico, só dois ou três artistas têm acesso por temporada.

Enquanto isso, há uma apropriação elitista um tanto hipócrita do samba, quando a alta sociedade apenas "aprecia" sambistas de grande valor, como Paulinho da Viola, Martinho da Vila e Beth Carvalho, como uma postura politicamente correta e se aproveitando que o grande público não os vê mais como artistas de seu meio, tão acostumados com os pastiches de samba do "pagode romântico".

A suposta eruditização do samba mostra a crise da MPB que sucumbiu à auto-reverência, aos tributos intermináveis, a relembranças incessantes em que não há mais novidades ou inovações como contrapeso à overdose de saudosismo que se observa na música brasileira autêntica.

O Dia do Samba e a lembrança dos cem anos do primeiro samba gravado em disco, portanto, servem para reflexão sobre a crise da Música Popular Brasileira, uma crise que ocorre não pela falta de talentos musicais de valor e autenticidade, mas pela supremacia de uma mentalidade comercial viciada, que apela para deturpações bregas da música popular ou para tributos ao mesmo tempo elitistas e saudosistas do legado da MPB autêntica que consegue chegar às rádios.

FONTES: Dicionário MPB, O Globo, Carta Capital, UOL, Wikipedia.

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