Por Alexandre Figueiredo
Em razão dos recentes eventos esportivos internacionais, a Copa do Mundo FIFA 2014, encerrada há algumas semanas, e as Olimpíadas Rio 2016, a sociedade tem a oportunidade de observar o tema bastante apreciado por arquitetos e cientistas sociais: a transformação do espaço urbano em cidades-empresas constituídos de paisagens de consumo.
A expansão da ideologia capitalista já envolve a cultura brasileira, e sabemos que há muito a dita "cultura popular" que existe há pelo menos 45 anos, o brega-popularesco, é na verdade subordinada a interesses mercadológicos explícitos, embora quase nunca assumidos pela intelectualidade dominante.
Desde que o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, anunciou, em 2009, a realização de obras para transformar o mobiliário urbano da cidade, incluindo projetos polêmicos como a transformação de um trecho da Av. Rio Branco num calcadão, a questão da cidade-empresa e da paisagem de consumo vem intrigando muita gente.
Afinal, a administração política das grandes cidades ganhou um contexto de transformar o espaço urbano não em um lugar onde se buscam reparar os problemas de âmbito social, mas preparar um aparato urbano para garantir o turismo e a arredacação financeira através dos impostos do comércio.
A supremacia da Economia nas atividades realizadas no Brasil, princípio ideológico para impulsionar o desenvolvimento econômico, embora seja uma perspectiva que procure garantir a estabilidade financeira e a geração de renda e emprego, nem sempre oferece respostas para diversos problemas vividos pela população.
O que se ignora é que a Economia é um ramo em que assuntos de ordem financeira, associados ao âmbito da Administração, são tratados. Tanto a Economia quanto a Administração, disciplinas autônomas porém parceiras constantes, lidam apenas com o aspecto de como gerar e gerir dinheiro, e nem sempre atendem ao chamado interesse público.
O caso do Pelourinho, na Salvador dos anos 90 e começo deste século, é ilustrativo. A modernização desse bairro do Centro Histórico de Salvador, sob a influência política de Antônio Carlos Magalhães, se deu fazendo o bairro se tornar um centro comercial de entretenimento para as elites, em detrimento da finalidade social de manter seus moradores tradicionais.
Para a implantação de corredores exclusivos de ônibus articulados - o sistema Bus Rapid Transit (BRT), modismo atual nos sistemas de ônibus das grandes capitais - , também o interesse público é sacrificado, com a destruição de áreas ambientais e de comunidades populares, oferecendo à população indenizações precárias que só os fazem deslocar para muito longe das moradias de origem.
O QUE SÃO CIDADES-EMPRESAS E PAISAGENS DE CONSUMO?
Entende-se que cidades-empresas são aquelas cidades que se tornam verdadeiras corporações, administradas não da forma de permitir a efetivação do interesse público, mas de estabelecer um projeto que tome como princípio central a Economia, mesmo quando tenta sacrificar o interesse da sociedade.
As cidades tornam-se espaços apenas para o consumismo, para o turismo e para a arrecadação financeira das autoridades e das empresas públicas e privadas. Apenas aspectos como segurança, emprego, moradia, são parcialmente atendidos, mas sem a ênfase necessária para atender às demandas da população.
Essas cidades são feitas para competirem entre si no mercado turístico e na apresentação de uma boa imagem para o mundo. Procuram ser politicamente corretas e atender parcialmente ao interesse público, mas demonstram que suas prioridades se voltam para os interesses financeiros em detrimento dos interesses sociais mais específicos ou profundos.
Desta forma, o urbanismo torna-se um desses objetos da mentalidade comercial das cidades-empresas. A arquitetura torna-se mercadoria, e mesmo o "social" se insere nesses limites da cidade comercial, num processo "higienista" que, em vez de confrontar com os problemas do desemprego e da pobreza, apenas deslocam as populações pobres para fora de lugares em que elas parecem incômodas para as elites.
A construção de estádios de futebol segue a agenda da transformação dessa modalidade esportiva num entretenimento apreciado pelas elites. A "privatização" do futebol, denunciada por vários jornalistas investigativos sobre os bastidores do esporte, é também um aspecto desse consumismo com estádios transformados em shopping centers com capacidade para menos pessoas e ingressos caríssimos.
A conversão de estádios em complexos comerciais não é em si ruim, já que tem a vantagem de tornar diversificado o lazer enquanto não ocorre uma partida de futebol. O comércio em volta ser útil quando os estádios são usados para outros fins, como concertos musicais. O problema é que os estádios são feitos para excluir as classes populares, através de ingressos caros e redução do número de cadeiras.
Até mesmo as favelas, graças à campanha midiática de glamourização da pobreza, através da espetacularização caraterística da "cultura de massa" brega-popularesca, tornam-se paisagens de consumo, a deleite do paternalismo elitista de turistas, celebridades e alguns ativistas dotados de uma vocação ativista-liberal.
Neste caso, nota-se que construções improvisadas e malfeitas, localizadas em áreas de risco ou em espaços ocupados desordenadamente, que se constituem as favelas, fruto da degradação econômica e da exclusão imobiliária, acabam sendo incluídas no contexto do espetáculo, da comercialização do entretenimento, da transformação da pobreza popular em algo exótico para o gosto das elites.
Os centros históricos tornam-se descaraterizados, criando aspectos pseudo-coloniais, aparatos pretensamente históricos que, no entanto, romperam com processos sociais naturalmente em curso. É o que se vê na Praça 15, no centro do Rio de Janeiro.
A praça deixou de apresentar, há décadas, o aspecto que tinha quando ocorreu o golpe que inaugurou a República no Brasil, em 15 de novembro de 1889. Todavia, o aspecto "caótico" que a Av. Alfred Agache, entre os anos 60 e 80, passou a apresentar, com seus pontos de ônibus e um enorme fluxo de transeuntes, de toda forma era consequência da natural evolução social do lugar.
Hoje, porém, a praça se "agigantou", reunindo novamente o trecho junto à Estação das Barcas com o outro que se estende até a Rua Primeiro de Março, enquanto a antiga Av. Alfred Agache foi transformada num quase túnel, por enquanto desativada para a construção de um novo corredor de avenidas que liga a Zona Portuária ao Aterro do Flamengo.
Admite-se que a demolição gradual do Viaduto da Perimetral, pista que ligava o Viaduto do Gasômetro ao Aterro do Flamengo de forma rápida, embora causasse protestos em boa parte da população carioca, tirou o aspecto sombrio e perigoso da Av. Rodrigues Alves, por enquanto desativada para obras de modernização.
Seria preciso repensar a urbanização e as obras arquitetônicas para que se levem em conta as tradições culturais, o legado histórico, a evolução sociológica e os interesses das classes populares. Incluir tais aspectos dentro de uma mentalidade marcada pela Economia é muito difícil, se interesses políticos, empresariais e tecnocráticos não fossem eventualmente sacrificados.
Também é insuficiente que o discurso político abrace todos esses aspectos, enquanto na prática ignora seu atendimento ou os aborda sem a devida prioridade. Como na limpeza da Baía da Guanabara, na desfavelização, na questão dos sem-teto, da violência, do desemprego.
Medidas pontuais não bastam para resolver os problemas, daí que existe a necessidade de uma nova mentalidade política que superasse procedimentos tecnocráticos, interesses economicistas e evitasse os vícios do fisiologismo político, para assim romper com a supremacia dos interesses financeiros nas políticas feitas para as cidades.
BIBLIOGRAFIA
MOTTA, Lia. A apropriação do patrimônio urbano: do estético-estilístico nacional ao consumo visual global. In: ARANTES, Antônio Augusto. O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000.
RIBEIRO, Amaury et al. O Lado Sujo do Futebol. São Paulo: Planeta, 2014.
ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In: ARANTES, Antônio Augusto. O Espaço da Diferença. Campinas: Papirus, 2000.
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