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A SEMANA DE 1922 E SEU COMPLEXO LEGADO


MODERNISTAS DE 22. ABAIXO, SENTADO, ESTÁ MÁRIO DE ANDRADE.

Por Alexandre Figueiredo

Há 90 anos, um simples evento cultural era realizado no Teatro Municipal de São Paulo. Seria um evento como tantos outros, talvez com expressiva repercussão dentro de seu tempo. Um acontecimento que poderia causar alguma polêmica forte no calor do momento, mas que poderia ter passado a posteridade como coisa passada e sem importância.

Só que isso não aconteceu. O evento, chamado Semana de Arte Moderna de São Paulo, causou tanta controvérsia e impacto que ultrapassou os limites geográficos e temporais. Exerceu grande influência na transformação da cultura brasileira do século XX, com reflexos que prevaleceram até meados dos anos 70.

A Semana de Arte Moderna reuniu as expressões dos modernos artistas ligados às artes plásticas, à literatura, à música e outras modalidades culturais. Era uma maneira de difundir os novos talentos, que em suas diferenças de estilo e de linguagem, representavam uma nova perspectiva da cultura brasileira em geral.

Uma curiosidade sobre a Semana de 22 é que, embora sejam os artistas em idade adulta, o clima da Semana de Arte Moderna mais parecia o de uma algazarra estudantil. Era como se fosse uma turma se uma escola num ambiente de recreio, diante de um aviso de algum atrapalhado professor. Eram vaias e gritos, alguns aplausos, muitas risadas.

Só esse aspecto acabou fazendo o evento ser transformador, por sua informalidade bastante inusitada para os padrões da época, onde até mesmo mancebos de 25 anos eram obrigados a posarem para fotografias com um olhar sério, quase taciturno, e sob o aviso de que teria que abandonar os prazeres e entusiasmos da juventude.

Havia nomes hoje bastante famosos na Semana de Arte Moderna. Vários são ainda hoje conhecidos, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Heitor Villa-Lobos, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Patrícia Galvão, a Pagu. Mas houve nomes também hoje meio esquecidos, como Ronald de Carvalho. E outros nomes que depois vieram a constituir o movimento integralista, uma tentativa de criar um "fascismo à brasileira", como Menotti Del Picchia e, sobretudo, seu líder maior Plínio Salgado.

No histórico evento, se reuniam artistas dos mais diversos perfis, em busca de uma linguagem moderna que colocasse a cultura brasileira a par das tendências mundiais. Negava-se a tradição cultural não por si mesma, mas como um processo hegemônico e dominante. Negava-se, acima de tudo, a hegemonia da tradição como obstáculo para a transformação e atualização cultural brasileira.

Embora várias visões tenham se expressado na Semana, duas delas tiveram amplo destaque, uma que resgatasse e fortalecesse o significado das manifestações das classes populares, defendida pelo escritor Mário de Andrade e outra, a tese da "antropofagia", defendida pelo também escritor Oswald de Andrade, que admitia a influência estrangeira como fator de acréscimo para as expressões culturais nacionais.

Eram visões aparentemente antagônicas, dos dois autores que, apesar do mesmo sobrenome, não eram parentes, mas eram amigos. Afinal, um estudo aprofundado pode tornar possível, dentro dos debates a respeito de nossa cultura, respeitar nossas tradições locais e apreciar as expressões estrangeiras, sem causar prejuízos para nossa cultura, mas, pelo contrário, somar a ela manifestações diversificadas de nosso modo de ver a nós mesmos e ao mundo em que vivemos.

O ANTI-MODERNISMO "MODERNISTA"

A Semana de Arte Moderna, antes de deixar seus frutos, causou muita controvérsia. Só a partir de 1930 é que se pensou no legado modernista como elemento fundamental para a modernização e libertação da cultura brasileira, então escravizada pelo galicismo e pelo formalismo extremo da literatura parnasiana.

A partir do movimento do Modernismo, veio uma geração de intelectuais preocupada em zelar pelo nosso patrimônio histórico cultural, produzido e manifesto pelos vários componentes sociais do nosso país, de uma riqueza ímpar e diversificada.

A cultura popular foi bastante beneficiada, porque houve o apoio de intelectuais realmente preocupados com nossa identidade cultural. Mário de Andrade, sobretudo, realizou uma grande turnê pelo país, pesquisando expressões culturais diversas, sobretudo musicais. E isso influiu até na difusão de ritmos regionais pelo mercado do disco e pelas emissoras de rádio, num contexto midiático longe do capitalismo selvagem e do conservadorismo político de hoje.

O legado modernista, desse modo, estimulou a difusão de movimentos culturais antes ocultados pelo isolamento regional. E a linguagem rica da cultura popular e das manifestações diversas, seja das classes populares, seja de intelectuais simpatizantes, tornou-se soberana até 1964, quando o sentimento de brasilidade foi banido pelos rumos políticos da ditadura militar. E sua influência ainda pôde resistir firme até 1976, quando o mercado fonográfico e midiático passou a concentrar seu poderio no país.

Essas resistências até eram claramente notadas em festivais da canção promovidos pelas emissoras de TV, na década de 1960, impulsionando ainda cenários de MPB bastante expressivos na primeira metade da década posterior. Todavia, o que veio a seguir foi o desmantelamento das identidades sócio-culturais através da indústria cultural.

Depois de 1976, as tendências brega-popularescas, então apenas voltadas a públicos pobres manobrados pela mídia que apoiava a ditadura militar, começaram a crescer através de um tráfico de influências que envolveu políticos, empresários da grande mídia, latifundiários e executivos do atacado e do varejo e de todo um mercado de entretenimento.

Ideologicamente, elas vieram, com sua "brasilidade" esquizofrênica, não muito "brasileira", embora também não muito "mundializada". Era uma forma de enfraquecer culturalmente o povo brasileiro reduzindo as expressões culturais numa colcha de retalhos confusa, cujos referenciais não eram mais transmitidos pela via comunitária e sim pelo poder midiático, e se baseavam sempre na baixa auto-estima, no conformismo social, na mediocrização artística e nos dramalhões pessoais exagerados.

O que se define como "cultura brega" e seus derivados extremos, muitos deles lançados nos anos 90, acabou sendo um meio de controle social do mercado e da mídia, enfraquecendo as identidades sociais locais, imobilizando as classes populares, escravizadas por uma avalanche de dados e informações midiáticas que não conseguem compreender na sua completude, assimilando-as de maneira caótica e fragmentada.

A cafonice que hoje domina o establishment da chamada "cultura de massa" é, na verdade, um amontoado de cacos resultantes das crises sócio-culturais vividas pelas classes pobres e pela sua consequente assimilação de informações fragmentadas pela grande mídia.

Infelizmente, existe uma campanha intelectual intensa sobre o brega-popularesco, como uma maneira etnocêntrica, de parte de cientistas sociais e críticos musicais que se tornaram seus maiores ideólogos, de enxergar a cultura popular. Através desse paternalismo intelectual, hoje é tido como "diversidade", embora suas diferenças regionais não sejam essencialmente grandes.

Faz sentido a intelectualidade defender, até com certa agressividade, a cafonice reinante. Há um mercado por trás, há quem fature muito por cima, de donos de casas noturnas a empresários de redes de supermercados. Há também bolsas de patrocínio de grandes capitalistas em jogo. Tudo para que cientistas sociais e críticos musicais criem um discurso que dê a falsa impressão de que o brega-popularesco é o "moderno folclore brasileiro", é a "verdadeira cultura popular", "a moderna diversidade cultural pop brasileira", "a MPB com P maiúsculo".

Tudo isso foi feito dentro de um diversificado processo de persuasão ideológica, em reportagens, monografias, documentários, etc. Até Hermano Vianna decidiu criar um arremedo de turnê, imitando (mal) o exemplo de Mário de Andrade, sem perceber as diferenças de contexto ou mesmo o caráter midiático que desfaz o sentido realmente popular de muitos estilos pesquisados pelo antropólogo paraibano radicado no Rio de Janeiro.

E outros "pensadores" seguiram seu exemplo, como o próprio Hermano que seguiu o exemplo do "tradicionalista" do brega, Paulo César Araújo, já antecedido pelos professores da UFBA, Milton Moura e Roberto Albergaria, que já eram arautos da mediocrização cultural na Bahia, nos anos 90.

Nomes Pedro Alexandre Sanches, Mônica Neves Leme, Rodrigo Faour, Patrícia Pillar, entre outros, tentam reafirmar o mercadão brega-popularesco como se fosse "cultura popular de verdade", numa clara vocação paternalista de defender a mediocridade cultural.

Essa intelectualidade é o que há de mais antagônico em relação ao legado modernista (do qual se derivam desde a Rádio Nacional ao ISEB, passando pela TV Excelsior e pelos CPCs da UNE). São intelectuais que, em que pese o discurso "progressista", seguem uma linhagem iniciada por cientistas sociais conservadores do porte de Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, José Serra e outros.

Esses cientistas sociais, críticos musicais, celebridades e artistas usam de todo um discurso modernista para defender a mediocridade cultural dominante no nosso país, como se o rótulo "popular", usado de forma bastante duvidosa, justificasse em si tal processo. Como se a cultura popular fosse uma mera questão de lotar plateias, vender discos, chamar mais gente, ou causar muita polêmica por pouca coisa, sem considerar sequer a qualidade do processo artístico e cultural e nem mesmo seu fundamento autenticamente social.

Juntando a Teoria da Dependência de FHC com o discurso "modernista" trabalhado pelo Tropicalismo, mas distorcido depois com a formação da tal "máfia do dendê" (o sistema clientelista de Caetano Veloso e Gilberto Gil quando passaram a chefiar o mainstream da música brasileira), a cultura brasileira passou a sofrer a hegemonia de uma "visão oficial" que determina a hegemonia absoluta do brega-popularesco, a pretexto da "diversidade" cultural.

E o que se vê é a apropriação de antigos discursos, para justificar a mediocrização cultural dominante. Ver gente com diploma de doutorado e com currículo de grandes entrevistas distorcer e se apropriar de antigas ideias, para justificar coisas que os falecidos intelectuais do passado não apoiariam, é constrangedor.

São processos ideologicamente anti-modernistas, mas defendidos usando o discurso modernista, deturpado ao sabor de gente como Pedro Alexandre Sanches. São anti-modernistas porque não se vê, nesses fenômenos "populares" das últimas décadas, uma sombra sequer de qualquer intenção de evolução sócio-cultural das classes populares. Estas não se emancipam com o brega-popularesco, já que elas ficam presas dentro de seu "espetáculo" do consumismo resignado da cafonice.

A título de comparação, uma coisa a refletir. A Semana de Arte Moderna de 1922 foi patrocinada pelo governo paulista da época e pela elite cafeeira. Seu enunciado não presumia um evento tão arrojado e desafiador aos interesses dos próprios patrocinadores.

Por outro lado, os eventos do Coletivo Fora do Eixo de hoje em dia, embora mais "modestos" que a Semana de 22, são também patrocinados pelas elites, e talvez por elites ainda mais ricas e poderosas que as do evento modernista.

Do contrário da Semana de 22, o FdE é "desafiador" apenas no enunciado, mas no seu processo é mais comportado, ideologicamente mais conformista do que se anuncia. O FdE acaba promovendo uma rebeldia sem causa, travestida de um pseudo-ativismo que não afeta os interesses dominantes no país.

Já o evento modernista foi o contrário: "comportado" no seu anúncio, tornou-se desafiador e revolucionário no seu processo. E tornou-se um evento que se voltou, ideologicamente, contra seus próprios patrocinadores, na medida em que seu caráter transformador abalou as estruturas sociais que contribuíram para o declínio do cenário político e econômico da década de 1920.

BRASILIDADE PERDIDA

Hoje queremos reencontrar a nossa brasilidade. A brasilidade lançada e defendida pelo movimento modernista, mas hoje perdida no rodamoinho do "relativismo" pós-tropicalista. É um processo difícil, porque o discurso globalizante se lança ferozmente contra até mesmo o mais modesto e flexível nacionalismo.

Não podemos ter nossa cara, não temos uma cara, mas podemos ter mil máscaras. Elas são "a nossa cara". Nossos valores são os do rádio e da TV, não mais de nossa comunidade. Nossas crenças são as da publicidade e da propaganda, nossa cidadania é a do consumismo, e a cafonice que deveria constranger a todos virou motivo de orgulho até para a intelectualidade.

Virou moda desqualificar os esforços intelectuais para a melhoria de nosso país, sejam os próprios modernistas, sejam entidades como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Centro Popular de Cultura da UNE, acusados, erroneamente, de sectarismo. E figuras humanistas como Chico Buarque também são desqualificadas, dentro desse contexto.

Vivemos a "ditabranda" do mercado, que feito um inseto traiçoeiro interviu na nossa cultura de forma que ele não é visto pela intelectualidade dominante. Esta comemora a "morte" do mercado, apenas por superestimar a queda da indústria fonográfica internacional e da mídia dos "grandes centros". Mas o mercado está ali, ressuscitado milagrosamente e fortalecido a revelia de qualquer retórica.

Desse modo, a tal "cultura transbrasileira" não passa mais do que uma "modernização" neoliberal de clichês banalizados das culturas regionais. Tudo virou uma "linha de montagem", para alimentar o lucro dos grandes empresários a pretexto de "expressão das periferias".

Tudo isso parece neo-modernismo. Mas não é. É mais um anti-modernismo. É o esquecimento das lições de Mário de Andrade e Oswald de Andrade, entre tantos outros, apesar de evocados, bajulados e com suas ideias mal interpretadas.

Só que isso é feito em nome do atual espetáculo neoliberal de bregas, neo-bregas e pós-bregas, que se acham o futuro da cultura popular brasileira. Mas o tempo provará que não, que essa "brincadeira" toda com a cafonice dominante só representa o triunfo do mercado sobre a cultura, o que deixa os barões da grande mídia mais tranquilos.

Ainda temos que aprender melhor as lições do complexo legado deixado pelo movimento modernista, e ver realmente em que caminho nos perdemos, para debatermos, sem pretensões apologistas e intelectualóides, os rumos e descaminhos sofridos pela cultura brasileira nos últimos anos.

FONTES: Conhecer Brasil, Carta Capital.

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