Por Alexandre Figueiredo
Há cinco anos, deixava a presidência do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, o antropólogo e professor da Unicamp, Antônio Augusto Arantes Neto.
Com apenas dois anos de gestão, Antônio foi o primeiro antropólogo a presidir a instituição, e se empenhou a enfatizar o patrimônio imaterial brasileiro, um tema existente até mesmo na mente fértil de Mário de Andrade, um dos mentores originais do então SPHAN, mas que só teve atenção especial oficialmente em legislação específica de 2000, o Decreto 3.551 de 04 de agosto de 2000.
Em sua gestão, o IPHAN realizou seu primeiro concurso depois da Consituição de 1988, concurso no qual tive a oportunidade de participar e a injustiça de ser reprovado pelos acidentes circunstanciais (greve de bibliotecários, dificuldade de pesquisar material, impressão cara de material na Internet).
Formado em Antropologia pela USP em 1966, Antônio Arantes foi orientado, na pós-graduação, pelo antropólogo britânico Edmund Leach e pela brasileira Eunice Ribeiro Durham. Sua tese foi, no mestrado, sobre a visão de mundo do homem do sertão e, no doutorado, e, no doutorado, sobre a literatura do cordel nordestino.
Tendo passado sua trajetória acadêmica num período de transformação nas ciências sociais, ainda que negativas, como no caso dos efeitos do regime militar, Antônio Arantes se formou dentro de uma perspectiva ainda herdada dos Centros Populares de Cultura da União Nacional dos Estudantes, iniciativa já abortada pelo regime militar, mas cujas lições ainda permaneciam vivas entre os estudantes brasileiros, que ainda se manifestavam através de uma UNE clandestina.
Tendo participado da fundação da Unicamp em 1968, Antônio Augusto Arantes desenvolveu a área de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da faculdade. Também realizou seus estudos na França, na Inglaterra e nos EUA, e estabeleceu contatos acadêmicos também com Mike Featherstone e Peter Fry.
Sua preocupação com o patrimônio imaterial, uma de suas bandeiras, encontra consonância com os rumos que as ciências sociais e o trabalho patrimonial se davam a partir dos anos 70. Com a redemocratização, a própria política patrimonial, antes reservada aos sítios históricos e à identidade arquitetônica para atender a demandas turísticas, passa a ter uma preocupação maior com o patrimônio imaterial.
Certamente, o patrimônio imaterial sempre esteve em consideração, ainda que de forma implícita, nas preocupações patrimoniais. A mente vanguardista de Mário de Andrade, conhecedor de movimentos musicais e de manifestações folclóricas, sinalizava para tal abordagem, mas as limitações institucionais, financeiras e políticas - iniciava-se o Estado Novo de Getúlio Vargas - , o então nascente SPHAN se limitou a dar ênfase nos sítios arquitetônicos históricos, sobretudo de origem colonial.
Mas foi apenas na década de 80 que o tema começou a ser amplamente discutido. A Constituição Federal de 1988 sinalizava para o patrimônio imaterial, no artigo 216. Mas, em 2000, o decreto-lei 3551 já determinava a política de proteção a esse patrimônio composto de crenças, rituais, receitas culinárias, partituras, brincadeiras, lendas e outras manifestações espirituais das comunidades populares.
Antônio Augusto Arantes havia publicado o volume O Que É Cultura Popular da série Primeiros Passos (a primeira edição do livro, até hoje no mercado, é de 1981), da Editora Brasiliense - que faz um relato sobre agremiações e grupos teatrais nas vilas operárias de São Paulo, entre 1960 e 1970 - , quando assumiu a presidência do CONDEPHAAT (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), órgão do governo de São Paulo.
No CONDEPHAAT, uma das principais atividades coordenadas por Arantes Neto foi de trabalhar e ampliar o foco dos bens preservados relacionados às populações imigrantes e às classes populares no Estado de São Paulo.
Outra atividade, baseada na delimitação do centro histórico de São Paulo, tornou-se raiz das discussões entre espaço e poder que Arantes, como coordenador, promoveria no livro O Espaço da Diferença, em que ele se limitou a escrever o texto de apresentação, deixando as questões para outros autores.
A questão de espaço e poder nos centros históricos envolve não apenas a interferência da especulação imobiliária em casas antigas, mas também no próprio trabalho de recuperação dos centros históricos, sobretudo no desenvolvimento de paisagens de poder, numa estética "neo-colonial", que no entanto divorcia a área de sua história social, independente de como as transformações histórico-sociais de cada área tenham-nas alterado.
Neste caso, é bom lembrar a abordagem de Lia Motta, que analisou os casos do Pelourinho em Salvador e da Praça 15 no Rio de Janeiro, transformadas em paisagens de consumo, voltadas não necessariamente à produção de conhecimento ou testemunho histórico - embora de alguma forma haja a evocação do passado histórico de cada lugar - mas ao mercado turístico.
Tanto que a recuperação das casas do Pelourinho, segundo denunciou Lia, se deu sem a permanência da população original, deslocada para subúrbios distantes. Não houve uma preocupação social na preservação do Pelourinho, um aspecto que, mesmo com a possibilidade sempre transformadora do espaço, não deveria ser desprezado nem menosprezado.
Afinal, a cultura popular, no Brasil, seja na música, na arquitetura, no cinema, teatro etc, sofre, nos últimos anos, a interferência predatória do mercado e dos interesses de poder. Este problema não é sequer vislumbrado por cientistas sociais mais badalados, alguns até queridos na intelectualidade, porém pouco preocupados senão em reafirmar tendências dominantes.
Afinal, o embate entre interesses privados e interesses públicos, muitas vezes confundidos dentro de um esquema de mercado altamente persuasivo e persistente, tendencioso e camaleônico, torna-se o grande problema relacionado ao patrimônio cultural brasileiro, em que a especulação imobiliária que intervém em antigos espaços históricos e o empresariado do entretenimento que distorce ritmos musicais numa "linha de montagem" radiofônica, são exemplos típicos.
Depois do CONDEPHAAT, órgão do patrimônio histórico e cultural paulista, Antônio Arantes, que já trabalhava no Conselho Consultivo do IPHAN e havia desenvolvido o Departamento de Patrimônio Imaterial e Programa Nacional do Patrimônio Imaterial no instituto, foi nomeado presidente da autarquia.
Comandando o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Arantes procurou tirar a instituição do esquecimento governamental, já que o então ministro da Cultura, o também cantor e compositor Gilberto Gil, anunciou que o IPHAN havia até reduzido o quadro de funcionários. Daí o concurso, já anunciado em 2004, realizado em 2005 e cujos aprovados só foram empossados depois da saída do antropólogo da presidência da autarquia.
Em 2004 houve um decreto que reestruturou o IPHAN, o decreto 5.040, de 07 de abril daquele ano, depois substituído pelo decreto 6844, de 07 de maio de 2009. O decreto de 2004, movido pelos debates e iniciativas em prol do patrimônio imaterial, também abriu caminho para as futuras Casas do Patrimônio (modelo que transformaria as superintendências do IPHAN em serviços dinâmicos e mais próximos à população).
Com o novo enfoque, que discute a interferência da globalização e da indústria cultural no quadro da diversidade cultural brasileira, além de buscar o estreitamento das relações do IPHAN com a comunidade e a ênfase nos bens intangíveis, a gestão de Antônio Augusto Arantes Neto realizou as seguintes medidas, entre outras: os registros do ofício das paneleiras na cidade de Goiabeiras, no Espírito Santo, da arte Kusiwa da tribo Wajãpi no Amapá, do acarajé baiano como patrimônios culturais, e o tombamento do Terreiro de Candomblé Ilê Maroiá Láji, de Olga de Alaketu, situado no bairro de Brotas, em Salvador.
Além disso, foi durante a gestão de Arantes Neto que se deu o início dos estudos para a transformação do Samba de Roda em patrimônio cultural, além dos estudos relacionados ao frevo pernambucano.
DEMISSÃO POLÊMICA - A crise da gestão de Arantes Neto no IPHAN foi um incidente que abreviou a produtiva administração do antropólogo à frente do Instituto, que abriu uma crise que, segundo Arantes, envolvia interesses político-partidários dentro da instituição.
Rumores diziam que a viagem e estadia do grupo de dança da coreógrafa Marília de Andrade, esposa de Arantes, que apresentaram um espetáculo no Ano do Brasil na França, em julho de 2005, teria sido bancada pelo IPHAN, e que Arantes foi intimado pela União a reembolsar o cachê.
Durante a crise, o gabinete de Arantes, conforme noticiou a jornalista da Folha de São Paulo, Mônica Bergamo, teria sido invadido por possíveis opositores, na virada de 2005 para 2006. Arantes lamenta que seu projeto de modernização do trabalho do IPHAN tenha encontrado resistência, agravada pelo isolamento do trabalho de Arantes e seus assistentes, motivado pela oposição e por supostos interesses político-partidários citados pelo antropólogo.
Em 11 de janeiro de 2006, Arantes divulgou a carta de demissão para o ministro Gilberto Gil e o Ministério da Cultura escolheu o presidente do Projeto Monumenta, Luiz Fernando de Almeida, para sucedê-lo no Instituto. Almeida estabeleceu um trabalho de transição com Arantes e assumiu o posto sem deixar o Monumenta, sendo presidente do IPHAN até hoje.
Nesses cinco anos, Arantes Neto voltou à Unicamp, Juca Ferreira sucedeu Gilberto Gil no MinC até terminar o segundo governo Lula, e hoje a pasta está sob o comando da cantora Ana de Hollanda, irmã de Chico Buarque e filha do historiador Sérgio Buarque de Hollanda.
O Departamento de Museus (DEMU) do IPHAN, dirigido por José do Nascimento Júnior, se desmembrou do IPHAN e hoje é o Instituto Brasileiro de Museus, tendo seu diretor se transformado em presidente da nova autarquia.
Dos cerca de 220 aprovados do concurso do IPHAN de 2005, cerca de 90 saíram antes de completar o estágio probatório. Outro concurso foi feito em 2009, mas eu não pude concorrer ao nível superior.
No entanto, o legado da breve gestão de Antônio Augusto Arantes Neto se deu pela transformação da lógica de patrimônio cultural em que a identidade nacional encontra novos desafios diante das pressões do mercado e da globalização, que se exercem de forma integrada mas por vezes conflituosa, cabendo um enfrentamento crítico, dinâmico e criativo.
FONTES: Cultura e Mercado, Núcleo Tocantinense de Arqueologia, Folha de São Paulo, Revista Ponto Urbe (USP), Agência Brasil, Jornal do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARANTES, Antônio Augusto. Patrimônio Cultural e Nação. Tradução de Andrea Borghi. In: ARAÚJO, Ângela Maria Carneiro (org.). Trabalho, cultura e cidadania: um balanço da história social brasileira. São Paulo: Scritta, 1997.
ARANTES, Antônio Augusto. O que é cultura popular. Série Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2006.
ARANTES, Antônio Augusto. O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.
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