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BREGA-POPULARESCO E PRECONCEITO



Por Alexandre Figueiredo

A popularidade que fez do brega-popularesco um fenômeno dominante e o respaldo que seus estilos recebem da grande mídia permite que se crie um discurso em que qualquer rejeição a qualquer ídolo ou estilo é tida como "preconceituosa".

Documentários, reportagens de revistas, jornais, sites e programas de televisão, depoimentos dos próprios ídolos no rádio e TV, tudo é feito para fazer prevalecer o brega-popularesco, simulando uma diversidade cultural no Brasil que não é mais do que uma caricatura ou um arremedo do seu verdadeiro patrimônio cultural. Trata-se de uma indústria, de uma coisa meramente mercadológica. Mas muitos confundem arte e cultura com entretenimento e alegam que a rejeição a ritmos brega-popularescos se dá pura e simplesmente por questão de "preconceito".

No entanto, a rejeição parte de intelectuais e fãs de música de qualidade que vêem nos ritmos popularescos um tipo de música sem valor artístico. Estarão eles errados? Que preconceito é esse que parte de pessoas que, por conhecerem a obra de Pixinguinha, Cartola e Nelson Cavaquinho, reagem com fúria ao sucesso comercial de Exaltasamba e Alexandre Pires? Que atitude preconceituosa é essa de pessoas que, vendo a música caipira autêntica correr o risco de desaparecimento, se irritarem diante da ascensão de Chitãozinho & Xororó e Zezé Di Camargo & Luciano, que aparentemente se afirmam como continuadores da música caipira?

A palavra preconceito é associada a idéia de um julgamento pré-concebido, que não tem o menor fundamento. No entanto, essa idéia sempre é associada de forma negativa, porque seu significado mais popular corresponde ao sentido da rejeição injusta, equivocada, sem muita justificativa. É como se o preconceituoso falasse "eu não gosto porque não gosto mesmo e acabou". Geralmente, o preconceito é relacionado a um certo purismo moralista.

Mas o que intriga essa fixação da mídia, ou melhor, dos barões da grande mídia, com a aparente ruptura dos preconceitos, desafia ainda mais a opinião pública. Afinal, a grande mídia, por trás dessa liberalização aparente dos costumes, não estaria escondendo algum mecanismo tendencioso de manipulação das mentes dos espectadores? Para entendermos a situação, temos que recorrer a fatos históricos recentes, como os tempos da ditadura militar, que prejudicou a vida social e intelectual como um todo.

DITADURA MILITAR E MORALISMO

A ditadura militar foi sustentada pelas forças sociais que eram ligadas a um moralismo tradicional, supostamente cristão e humanista. Essas forças, abaladas com a radicalização do discurso do então presidente da República, João Goulart, no comício na estação da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, em 13 de março de 1964, reagiu com outro comício e passeata, seis dias depois, no Vale do Anhangabaú, na cidade de São Paulo. Era a Marcha da Família Unida com Deus pela Liberdade, conhecida também como Marcha Deus e Liberdade, e era organizada pela igreja católica, por seitas evangélicas e por grupos empresariais e militares de direita.

Na verdade, essa marcha é o ponto máximo de outros comícios e passeatas que aconteciam em diversos Estados brasileiros e, mesmo depois do golpe militar de 1964, outras marchas similares foram realizadas para comemorar a derrubada do governo João Goulart, tido como "comunista", ainda que seu perfil político e econômico corresponde, em parte, ao mesmo programa adotado, nos dias de hoje, pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva.

Dez anos depois, porém, o moralismo que sustentava a ditadura militar teve que adotar uma brecha, diante da crise política e econômica que atingiu o Brasil. Ela foi conseqüente do aumento do preço do barril de petróleo no Oriente Médio, em 1973, que provocou o colapso do plano econômico lançado em 1967, ainda no governo do general Costa e Silva. Chamado de "milagre brasileiro", esse plano de desenvolvimento subordinado à perspectiva capitalista do Fundo Monetário Internacional, que desejava preservar a supremacia dos países mais ricos do mundo, foi atingido por essa crise mundial, que os analistas de então chegaram a comparar com a crise da Bolsa de Nova York de 1929.



Exageros à parte, a crise econômica, que poderia significar uma crise social de grandes proporções, fez a crise do governo do general Emílio Médici, que promoveu o "milagre brasileiro" como afirmação plena do sucesso do poder militar, até ocorrer a crise. Com ela, a ditadura militar, que vivia em fase de muita repressão, sob o pretexto de combater a guerrilha comunista, ensaiou uma cautelosa abertura política, para aliviar o clima de tensão, que levaria a ditadura militar ao fim, uma década depois.

No ramo do entretenimento, a base de apoio da grande mídia teve que abrir a brecha do controle moral, vendo que a crise econômica e política poderia causar uma violenta revolta popular. Apostando nos instintos do público masculino, uma vez que vem dos homens as ações mais violentas e radicais, a grande mídia liberou o consumo de referenciais grotescos, inclusive de nível pornográfico, para o público. Apenas havia a restrição etária, afinal a Censura Federal queria mostrar serviço.

Dessa forma, o imaginário brega-popularesco, já difundido pela mídia conservadora das regiões mais atrasadas do país, foi reforçada pela valorização do grotesco, entre as piadas maliciosas e a pornografia vulgar, como maneira para distrair a população. Veio o humorismo grotesco, mais preocupado em mensagens de duplo sentido ou insinuações sutilmente "eróticas" do que para provocar graça, restando apenas a exploração do ridículo, que ainda desperta risadas na platéia. Vieram então a edição brasileira da revista Playboy, franqueada pelo Grupo Abril - um dos grupos de mídia conservadores - , as revistas pornográficas de linha mais grotesca (Big Man Internacional, Fiesta etc.) e os humorismos "apimentados" da televisão, além das pornochanchadas no cinema e ídolos como a cantora Gretchen e os comediantes musicais Cremilda e Manhoso.

"CULTURA DO CAFONA" - O POVO, SEGUNDO OS DONOS DO PODER

A raiz de toda a rejeição dos que defendem uma cultura de qualidade contra o brega-popularesco vem do próprio período ditatorial, quando um projeto de transformação social foi abortado pela ditadura. O debate cultural que o projeto dos CPC's da UNE e o sucesso da Bossa Nova foram interrompidos com o governo militar, e isso acabou com o diálogo entre o movimento estudantil e as classes populares, pelo menos da forma que era efetivada nos primeiros anos da década de 1960.

Mesmo assim, a "cafonização" já estava em curso desde o final dos anos 1950, quando o poder coronelista do interior do país, associado à burguesia nacional, através de suas rádios e do serviço de alto-falantes, criava um padrão de entretenimento que levasse as classes populares ao conformismo ou à revolta resignada, evitando assim que cresçam as demandas de revoltados para as Ligas Camponesas e outros grupos similares. Estes grupos representavam a revolta popular no interior do país, e desafiavam os grupos detentores do poder nestas regiões.

Por isso, a "cafonização" tornou-se uma arma das elites para evitar a revolta popular e a radicalização do processo de reforma agrária. O ideal da "cultura brega", antes de receber o nome de "brega" ou até mesmo de "cafona", mas já conhecido como "romântico-popular", na falta de algum outro nome para dar.

Dessa maneira, o ideal brega virou o ideal de degradação cultural, de criação de um perfil de "povo" que os donos do poder investiram pesado para fazer valer. Para isso, houve uma aliança entre os proprietários rurais e a aristocracia paulista, aliados tradicionais desde que São Paulo dependeu dos proprietários rurais para acelerar sua urbanização e efetivar sua economia, e que no caso da "cultura do cafona", representou mais um esforço para evitar o avanço das mobilizações sociais.

Assim, a indústria da Comunicação serviu aos interesses dos proprietários rurais e também da burguesia urbana, que trabalharam num modelo de "povo" que determinasse papéis para as classes populares que não agridam a estrutura de poder vigente. Dessa forma, condena-se o povo ao sub-emprego, ao lazer passivo nos botequins, à prostituição, ao comércio clandestino, a uma personalidade patética, ao mesmo tempo revoltada com sua situação de pobreza e resignada com ela. Reclama-se da pobreza apenas pelas costas, reconhecendo a impotência social do povo pobre.

A PRETENSA "DIVERSIDADE" CULTURAL

Com o imaginário "popular" forjado pelas elites detentores do poder nas zonas mais pobres do país, a cafonização da cultura popular tornou-se uma poderosa arma para a ditadura militar neutralizar, no interior do país, a revolta popular, minimizando a necessidade de recorrer à repressão. A manipulação pelo entretenimento faz com que a ditadura dispensasse a força policial e com isso evitar violência física e perdas humanas que poderiam prejudicar a reputação do "governo revolucionário", que se empenhava em passar uma pretensa imagem de "democracia".

A música "cafona", como tornou-se conhecido o som popularesco respaldado pelo poder coronelista, a princípio tinha uma influência estrangeira. Geralmente eram ritmos fora de moda, ou caricaturalmente diluídos, que eram interpretados por "novos artistas", através da baixa qualidade artística, da postura grotesca e de um caráter evidentemente patético. É uma música claramente comercial que inaugurava uma era da indústria cultural no Brasil, marcada pelo mercantilismo.

A influência de ritmos estrangeiros fora de moda se compara, na economia, a um dos princípios do projeto de industrialização do Brasil ditado pelo Fundo Monetário Internacional e adotado pelos ministros do governo Castelo Branco (1964-1967), Roberto Campos (Planejamento) e Otávio Bulhões (Fazenda). Esse princípio era o de introduzir material obsoleto das matrizes das indústrias estrangeiras. Ou seja, os boleros, valsas, mariachis e até o rock italiano que inspirou a Jovem Guarda e que, aqui, serviu de fonte para a segunda geração de ídolos cafonas (Paulo Sérgio, Odair José, etc.), eram a "matéria prima obsoleta" desse projeto musical que expressava uma idealização da "cultura popular" desenvolvida pela ditadura.

A "diversidade cultural" da música cafona só viria a partir de meados dos anos 70, com o reflexo musical dos projetos nacionalistas de direita adotados pelos governadores biônicos. Seu primeiro teste, porém, foi o "sambão-jóia", diluição da música criativa de Jorge Ben (hoje Jorge Benjor) com um "sotaque" de Jovem Guarda. Essa "diversidade" tinha por objetivo forjar uma identidade nacional dentro do contexto político conservador, em concordância com a abertura política restritiva da ditadura.

A MPB tornou-se domesticada pela grande mídia (Rede Globo) e pela indústria fonográfica. Por outro lado, a música brega sofria tentativas de "sofisticação", a princípio pelos ídolos exportados para o hit-parade norte-americano (Morris Albert, Terry Winter). Depois, um desses ídolos, Michael Sullivan (que veio a ser o Ivanilson do conjunto da Jovem Guarda, Os Fevers), iniciou o cruzamento da MPB pasteurizada com o brega mais comportado, abrindo caminho para as tendências neo-cafonas dos anos 90.

Aí vieram os arremedos de samba e de música caipira dotados da forte influência da música brega, o sambrega e o breganejo. Vieram também as tendências festivas como o forró-brega e a axé-music. O grotesco comparecia através do pagodão pornográfico e do "funk carioca". Criam-se várias faces do brega-popularesco para desenvolver um leque de estilos meramente comerciais, feitos para o sucesso momentâneo e sem o menor compromisso com a arte, com a cultura nem com a transmissão de conhecimento para a sociedade, que seria o princípio maior da cultura.

DE QUEM PARTE O PRECONCEITO?

Os ritmos popularescos ganham sucesso através de um poderoso esquema de marketing. Emissoras de rádio e televisão, revistas e jornais, páginas na Internet, tudo é feito para promover este sucesso e efetivá-lo. Isso ocorre de forma insistente até que as pessoas se acostumem com os ídolos popularescos, parecendo que a popularidade deles se tornou espontânea.

No entanto, as músicas desses ídolos não possuem qualidade artística, são composições sofríveis, mal interpretadas. Os defensores do brega-popularesco aliás esnobam quem critica essa baixa qualidade artística, mesmo quando se torna bem claro que, dentro do rótulo samba, seja gritante a involução de uma música rica como a de Cartola e Pixinguinha para grupos grotescos como É O Tchan e Psirico.

A ditadura do "mau gosto", desafiando a tradição da música popular de qualidade - creditada pejorativamente como o "bom gosto" - , se serve de estereótipos de povo e de um discurso que realimenta o sucesso na mídia tentando convencer que esse sucesso ainda não foi alcançado. Daí a atitude arrogante dos ídolos que, mesmo tendo alcançado o topo do sucesso, ainda se acham insatisfeitos, supostamente injustiçados.

Esses ídolos se comportam assim por um interesse meramente comercial de ampliar mercados. Encontram a rejeição de um público mais qualificado e, por isso, os ídolos popularescos se dizem vítimas de preconceito. Millôr Fernandes, o famoso humorista e escritor, sempre desconfiou dessa idéia de "não ter preconceitos". Segundo ele, as pessoas que falam em "não ter preconceitos" são as mais preconceituosas.

O grande problema está no sentido da palavra "preconceito", sempre como sinônimo de "rejeição injusta". O preconceito significa uma idéia pré-concebida, mas não significa sempre rejeição. O "funk carioca" tem sua carga de preconceito não na parte dos detratores, mas na parte dos defensores. Mesmo o feminismo das fãs de pagodão e "funk" não existe, porque o feminismo vai muito além de uma simples aversão aos homens e da simples atitude das garotas saírem à noite em grupos que não tenham homens acompanhando.

O preconceito, aliás, se baseia em estereótipos, em interpretações distorcidas. O que não é o brega-popularesco senão a visão distorcida da cultura popular brasileira? Quem rejeita o brega-popularesco não pode ser considerado preconceituoso, uma vez que essas pessoas, a contragosto, já conhecem bem seus ídolos e valores, seja pela televisão ou rádio, seja indo pelos supermercados, passando perto de camelôs, seja pelo barulho da vizinhança. Afinal, como pode um público que entende de cultura e pesquisa constantemente, ser considerado "preconceituoso"?

FONTES: Folha On Line, Wikipedia, Millôr / Revista Veja.

BIBLIOGRAFIA

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ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2001.

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TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 1997.

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