Por Alexandre Figueiredo
Em 1998, estava eu indo para a palestra de abertura de um Seminário de Comunicação. Entre os presentes, estava o geógrafo Milton Santos, intelectual do qual ouvi falar e que pude conhecer um pouco melhor graças a um professor da Faculdade de Comunicação, o jornalista Fernando Conceição, que é doutor pela USP e foi amigo de Santos no final da vida deste. Fernando Conceição até participou, como um dos jornalistas entrevistadores, do programa Roda Viva (TV Cultura) com o geógrafo baiano.
Na sua curta palestra, Milton Santos, entre outras coisas, criticou a ingenuidade dos turistas em Salvador. O que ele disse me escapou da mente mas certamente deve ser uma síntese de suas idéias a respeito de geografia humana e globalização, uma de suas últimas e maiores preocupações. Já parecia doente (era portador do câncer da próstata que anos depois o matou) e a voz, apesar de cansada, ainda procurava expressar sua força, certamente menor que a força de suas idéias e de seu trabalho, cujos frutos ainda estão por vir.
O que leva um homem negro, de origem humilde (classe média baixa), nordestino, baiano do interior, a se tornar um dos maiores intelectuais do país? Será a miséria em si, que se torna, por avesso, uma vitrine para o "sucesso"? Será o marketing do sofrimento, a fazer do aspirante à fama uma espécie de pedinte das celebridades? Será o lobby de protetores importantes? Se qualquer destas três respostas alguém atribuir à figura de Milton Santos, isso é um erro muito grande. Milton se sobressaiu porque ele mesmo quis e lutou. Foi o seu trabalho e sua coragem que o impulsionaram, dentro de um Brasil ainda agrário, de péssima reputação no exterior.
Santos nasceu num Brasil marcado pela violenta e escancarada corrupção na República Velha (a "assustadora" corrupção do governo Lula, com seus "mensalões", "sanguessugas", "apagões aéreos" e "galtamas", é um grande nada diante do que se fazia entre 1889 e 1930 na política brasileira). Era 03 de maio de 1926 e a República Velha vivia o auge de suas artimanhas. Milton Santos nasceu no interior da Bahia, na pequena cidade de Brotas de Macaúbas, e vale lembrar que o interior do Brasil sofria muito mais na República Velha que as áreas urbanas, por conta da dominação coronelista, com seus fazendeiros, políticos ou delegados que mandavam nas áreas rurais com mão de ferro.
Estimulado pelo fato de seus pais terem sido professores primários formados pelo ICEIA (escola situada em Salvador, no bairro do Barbalho), Milton Santos cedo se dedicou aos estudos. Teve formação autodidata na alfabetização. Aos dez anos, fez uma prova de seleção no Instituto Baiano do Ensino, em Salvador, e foi aprovado em primeiro lugar. Os pais lhe diziam que o caminho mais seguro para a liberdade do indivíduo é a educação.
Milton Santos ingressa na Faculdade de Direito da então Universidade da Bahia (atual UFBA). Era uma época tumultuada, quando o Brasil, hesitante quanto à sua posição política definitiva na Segunda Guerra Mundial - o governo Vargas apenas sinalizava levemente para as ditaduras fascistas européias, mas sem demonstrar uma posição firme a respeito - , decidiu se aliar à Triplice Aliança (EUA, França, Inglaterra, Rússia) no combate ao Eixo (Alemanha, Itália, Japão). Surgem duas entidades representativas estudantis, o Partido Estudantil Popular e a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas. Já existia a União Nacional dos Estudantes, e Milton Santos tentou se candidatar presidente da UNE, mas na sua chapa foi aconselhado pelo colega Mário Alves a se candidatar vice na sua chapa, porque, segundo Alves, um negro teria dificuldade de negociar com as autoridades. Santos aceitou, mas ficou sentido com a alegação de racismo. A chapa saiu vitoriosa e Milton exerceu a função de vice.
Formado em Direito, Milton Santos torna-se professor da Faculdade Católica de Filosofia da Bahia. Já havia tido experiência como professor de segundo grau (atual ensino médio) de Geografia no ICEIA e no Colégio Central. Aliás, sua vocação maior se voltaria para uma esta outra ciência, que marcaria a sua vida e sua obra: a Geografia.
Seu interesse por Geografia - que, junto à Matemática e a Filosofia, foram dois campos decisivos para a formação intelectual de Santos - se fortaleceu quando o então estudante de Direito conheceu o livro A Geografia Humana, do geógrafo pernambucano Josué de Castro (o qual, em seus últimos anos de vida, teria contato com Milton Santos, no exílio de ambos na França, em 1964). Torna-se então professor de geografia.
Milton Santos, no final dos anos 40, se torna editorialista do jornal A Tarde, em Salvador, escrevendo 116 artigos sobre os vários temas correntes na Bahia, no Brasil e no mundo, incluindo a questão do cacau e a África, que naquela época vivia os fatos históricos dos movimentos de independência de antigas colônias de países europeus. Torna-se correspondente do jornal em Ilhéus. Com sua experiência na região, Santos publica o livro "Zona do Cacau", lançado em 1955 e posteriormente incluído na Coleção Brasiliana, da Companhia Editora Nacional, no ano de 1957. Ocupou também a cadeira de Geografia Humana, como catedrático, no Ginásio Municipal de Ilhéus.
Em 1956, acontece no Rio de Janeiro o Congresso Internacional de Geografia, promovido pela União Geográfica Internacional e realizado na Escola Naval do Rio de Janeiro. Considerado um marco para a ciência geográfica no Brasil, o evento seria decisivo para a carreira de Milton Santos e para as lições que ele levaria depois para o ension geográfico na Bahia. Participando do evento, Milton entrou em contato com outro participante, o professor Jean Tricart, da Universidade de Strasbourg, na França. O contato rendeu um curso de Doutorado em Geografia, título adquirido em 1958. Sua tese, O Centro da Cidade do Salvador, tornou-se um clássico da Geografia.
De volta a Salvador, Milton Santos encontrou o então reitor da Universidade da Bahia (atual UFBA), Edgard Santos, que na época promovia um projeto de transformação do ensino universitário na instituição, fato que marcou o período da modernização cultural e social de Salvador, seguindo o ritmo do Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek.
Edgard propôs a Santos que ele desenvolvesse um grupo de pesquisa relacionado à geografia. No entanto, o grupo teria que evitar o nome "geografia" na sua denominação, uma vez que o grupo não teria a direção dos professores do Curso de Geografia e História da Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da Universidade da Bahia. Um parêntesis a respeito dessa faculdade é que ela se situava na Fonte Nova, com entrada na rua Joana Angélica, em Nazaré, onde hoje é o Ministério Público do Estado da Bahia. Atualmente a faculdade se dividiu em várias outras, a principal delas, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, mudou sua sede para a área de uma antiga chácara, na então pouco povoada Estrada de São Lázaro, na Federação, cuja entrada é junto à Faculdade Politécnica, prédio fundado em 1960.
Santos também estabeleceu contatos com o professor Tricart, seja no Hotel da Bahia - atual Hotel Tropical da Bahia e, na época, o único hotel com estrutura moderna em Salvador - , seja no escritório de advocacia de Milton, numa sala do edifício Antônio Ferreira, localizado na Rua Chile, então uma das mais destacadas ruas do centro soteropolitano.
Com o apoio do reitor Edgard Santos e do professor Jean Tricart, além da da Cooperação Técnica do Ministério das Relações Exteriores da França, Milton Santos fundou, Milton Santos fundou, logo no primeiro dia de 1959, o Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais da Universidade da Bahia. A equipe era composta por jovens professores, estudantes de graduação em Geografia e História e até de estudantes secundaristas interessados na área. Estes se empenharam em assistir às conferências organizadas por Milton Santos, que contavam com a participação de professores franceses e brasileiros.
No final dos anos 1950, Milton Santos se inscreve para concurso de livre docência da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade da Bahia. O concurso, anunciado, não chega a se realizar, por razões aparentemente não esclarecidas. O professor da instituição, Délio Pinheiro, associou o cancelamento do concurso aos interesses de uma "oligárquica e segregacionista sociedade baiana de belas gravatas e verdades encobertas". Milton recorre à Justiça, tendo como seu advogado Nelson Carneiro, que décadas depois destacava-se como senador e defensor da lei do divórcio. A causa de Santos foi ganha em todas as instâncias do processo, e o geógrafo teve êxito no concurso através de sua tese Os Estudos Regionais e o Futuro da Geografia.
Além dos trabalhos realizados no território baiano, de grande valia para os estudos de Geografia, a equipe do Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais também fez parte ativamente das reuniões da Associação de Geógrafos Brasileiros, onde se discutia, até mesmo, a sede da próxima reunião, em áreas onde se poderia chamar a atenção da sociedade quanto à urgência de pesquisas sócio-geográficas. Entre 1959 e 1964, as cidades que serviram como sede das reuniões foram Maringá (PR), Poços de Caldas (MG), Mossoró (RN), Penedo (AL), Campina Grande (PB), Ribeirão Preto (SP) e Jequié (BA), sendo que nesta cidade do interior baiano o próprio Milton Santos presidiu os trabalhos.
Ao lado das atividades de professor, jornalista e pesquisador de Geografia, incluindo publicação de vários livros e artigos, Milton Santos ainda foi convidado pelo presidente Jânio Quadros, em 1960, para assumir no ano seguinte o cargo de sub-chefe do Gabinete Civil. Dentro do espírito de política externa independente do governo Quadros - que causou sérios problemas com as forças conservadoras que o ajudaram a eleger, uma vez que, no âmbito das relações exteriores, Jânio parecia dar ênfase aos países socialistas a pretexto do espírito de "autodeterminação dos povos" - , a comitiva viajou para Cuba, incluindo Milton Santos, que, com seus compromissos de esquerda, seria investigado posteriormente pelos órgãos de segurança vinculados à ditadura militar.
Entretanto, entre a renúncia de Quadros e o golpe de 1964, Milton Santos continuaria com sua atividade produtiva, tendo concorrido, em 1962, à presidência da Associação de Geógrafos Brasileiros. No entanto, sofreu preconceitos relacionados à sua candidatura. Defendido pelo cientista social, escritor e empresário Caio Prado Jr. (fundador e dono da Editora Brasiliense), Milton levou adiante sua candidatura e foi eleito presidente da AGB, presidindo também o encontro de geógrafos realizado em 1963, na cidade baiana de Jequié. Ainda em 1963, Milton foi convidado pelo então governador da Bahia, Lomanto Júnior, para presidir a Comissão de Planejamento Econômico, cargo que exerceu até 1964. Apesar dessas atividades, Milton continuava seu trabalho constante no Laboratório de Geomorfologia e Estudos Regionais.
Milton Santos chegou a ser preso por meio ano, no 19º BC (Quartel do Cabula), em Salvador, após o Golpe de 1964, devido à militância do geógrafo em causas de esquerda, bem ao desagrado dos então detentores do poder. Naquela época o 19º Batalhão de Comando ficava numa área com mato e árvores, não tinha a Av. Silveira Martins e as casas populares que hoje ficam ao seu redor. Com a prisão de Santos, amigos professores intervieram para que o geógrafo obtivesse exílio na França. Santos imaginou que o exílio dele duraria, quando muito, seis anos. Mas duraram 13 anos. Torna-se professor e pesquisador em Bordéus, Toulouse e em Sorbonne. Entre 1968 e 1971 se estabelece como professor em Paris, onde trabalha como diretor de pesquisas em planejamento urbano e rural do IEDES (Institut d' Études du Développement Économique et Social de l' Université de Paris).
Durante as aulas em Bordéus, Santos, divorciado de seu primeiro casamento - do qual gerou o filho e também intelectual Milton Santos Filho, prematuramente falecido - , inicia um relacionamento com sua aluna Marie Hèlene Tiercelin, que se torna sua esposa e parceira de seus trabalhos em Geografia. Foi sob o apoio de Marie Hèlene que Milton Santos intensificou sua produção acadêmica, a partir dos anos 70. Milton e Marie se casam no Haiti, em 1972, antes de seguirem para Toronto, no Canadá. Seguem depois para a Universidade Politécnica em Lima, no Peru, em 1973, e daí para Dar-es-Salaam, capital da Tanzânia, entre 1974 e 1976, onde o casal se torna amigo do então presidente do país africano, o socialista Julius Nyerere. Nessa época, entre 1975 e 1976, Milton ainda realiza trabalhos na Venezuela.
Ainda em 1976, Milton Santos e sua esposa se mudam para os EUA, onde ficam um ano. Passam pela Universidade de Columbia, em Nova York, e no Massachusetts Institute of Tecnology, onde o geógrafo trabalhou como professor pesquisador e entrou em contato com o lingüista Noam Chomsky, mais tarde preocupado, como Santos, com o fenômeno da globalização.
Fora as passagens rápidas pelo Brasil, uma delas a serviço da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e outra a convite da professora Maria de Azevedo Brandão, Milton Santos viveu no exílio entre 1964 e 1977. A volta dele ao país, por definitivo, se deu porque a esposa Marie Hèlene, grávida, fez questão de que o filho, Rafael, fosse um brasileiro e além disso nascido na Bahia.
Apesar do retorno, a Universidade Federal da Bahia não se empenha em reintegrar Milton Santos como seu professor. Ao longo desse tempo, vários reitores da UFBA foram procurados para trazer Milton de volta ao país, e tudo se limitou a meras promessas, que na prática não foram cumpridas. Nessa época, as demais universidades brasileiras adotam semelhante indiferença para com professores do nível de Milton Santos, com exceção da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Milton Santos torna-se consultor para instituições no Rio de Janeiro e São Paulo. Faz o mesmo trabalho no setor de Ação Regional do governo paulista, comandado então pelo empresário e político Paulo Egydio Martins. Ao longo dos anos, Santos também presta consultoria para as Nações Unidas, para a Organização Internacional do Trabalho, Organização dos Estados Americanos, UNESCO e para os governos da Argélia e Guiné-Bissau e para o Senado Federal da Venezuela. Em 1979 é contratado professor assistente na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um cargo de principiante para um intelectual de vasta experiência, um desses fatos insólitos do período ditatorial.
Em 1984, inscreve-se para o cargo de professor titular na Universidade de São Paulo. Conta com o apoio de jovens professores. Na USP, Milton Santos recupera suas plenas atividades docentes, depois de 20 anos de restrição à liberdade sob o regime dos generais. Ele desenvolve, na USP, uma equipe de pesquisadores baseada nos mesmos moldes do antigo Laboratório de Geomorfologia, grupo que permanece até hoje, mesmo após a perda de seu mestre idealizador. Milton também foi membro, entre 1988 e 1990, da Comissão de Alto Nível do Ministério da Educação, cuja função era estudar a situação do ensino brasileiro. Integrou a Assembléia Constituinte do Estado da Bahia, para elaborar a Constituição estadual promulgada em 1989.
Nos últimos anos, Milton Santos recebe vários prêmios e medalhas, devido ao seu rico trabalho, de várias instituições em diversos países, incluindo universidades. Foram prêmios da Venezuela, Cuba, França, Tanzânia, além do próprio Brasil. Publicou mais de quarenta livros, de 1948 a 2001, e foram também mais de 300 artigos em revistas científicas de vários países do mundo, tendo seus textos publicados em português, francês, espanhol e inglês. O último trabalho completo foi publicado em 2001 pela Editora Record: O Brasil: Território e Sociedade no Início do Século XXI. No final dos anos 1990, Milton Santos foi entrevistado pelo programa Roda Viva (TV Cultura), de Paulo Markun, em cuja mesa de entrevistadores estava o professor do autor deste presente texto, Fernando Conceição.
Milton Santos, doente de câncer da próstata, estava ainda preparando um livro sobre o Centro de Salvador quando faleceu, no dia 24 de junho de 2001. O país perdia um de seus grandes intelectuais, que surpreendia pelo seu pensamento lúcido e atualizado nos seus últimos anos de vida, tal qual surpreende por suas obras mais antigas soarem atuais e necessárias para a pesquisa dos estudantes de Geografia e outras ciências humanas e sociais. Todavia, o mestre Santos, além de sua obra, deixou seus frutos naqueles que com ele conviveram e trabalharam e hoje tentam prosseguir naquilo que o geógrafo baiano não pode mais trabalhar.
AS IDÉIAS DE MILTON SANTOS
Ao longo de sua obra, o principal tema de estudo é a questão do espaço e de sua transformação feita pelo homem. Na sua forma coletiva, o espaço torna-se território, transformado permanentemente pelos mais diversos agentes sociais. A partir dessa idéia, Milton Santos desenvolve uma análise interdisciplinar, recorrendo à História, à Sociologia, à Economia e outras ciências, também considerando os problemas políticos que atingem a humanidade.
Nos últimos anos, Santos questionava a globalização, como vários intelectuais que não se iludiram com a utopia "mundializada" do capitalismo do Primeiro Mundo. Aqui podemos traçar um paralelo entre Milton Santos e Noam Chomsky, pois este, estudioso norte-americano da lingüística, também passou a se dedicar a questionar a utopia globalitária e a transformação das forças geopolíticas contemporâneas. Ambos também questionam, nos seus livros e artigos, o fenômeno da overdose da informação, idéia tabu entre os brasileiros, tamanho o trauma da censura ditatorial e devido também ao caráter novidadeiro da hegemonia da grande mídia, cujas contradições e problemas ainda não são devidamente contestados pela sociedade.
Para Santos, os grandes centros urbanos não são os responsáveis pela degradação da experiência humana. A civilização que se adota, com base no sistema capitalista que gera desigualdades sociais e cria privilégios para poucas pessoas, é que contribui para a situação desfavorável da grande maioria das pessoas.
Milton Santos também criticava a burocracia universitária, que prejudicava a democratização da instituição e o processo de produção e transmissão de conhecimento. E sabemos que, como grande pesquisador e professor, ele próprio produtor uma obra inovadora de livros, artigos, depoimentos, aulas e palestras, Milton Santos teve muito conhecimento de causa para defender a Educação em seus vários aspectos.
FONTES: Folha de São Paulo, Fundação Perseu Abramo, Wikipedia, O Estado de São Paulo, O Globo, UOL Educação, Caros Amigos, Revista Afro-Ásia (UFBA).
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