Por Alexandre Figueiredo
Em 2008, um movimento musical, expressivo mas polêmico, completa meio século de existência. Na verdade, tão polêmica é a sua origem, mas o ano de 1958 tornou-se oficial talvez não porque a Bossa Nova tenha surgido, mas tenha se consagrado a partir de então.
Sabe-se que a Bossa Nova é um estilo que junta três tendências musicais, não somente duas, como tradicionalmente se diz. E sabe-se, também, que a Bossa Nova é um dos exemplos de sofisticação musical do mundo inteiro, e que significou, para a música brasileira, um grande exemplo da "antropofagia" defendida pelo modernista Oswald de Andrade, que havia falecido pouco antes da ascensão da Bossa Nova, aos 64 anos, em 1954.
Mas Oswald, a exemplo da turma de 1922, mantinha conexão, direta ou indireta, com a geração que transformou a cultura nos anos 50, não somente a Bossa Nova, como o Concretismo e os debates de cinema que fizeram muitos estudantes aplicarem depois a teoria de um novo cinema, aliás oportunamente chamado de Cinema Novo, para criar uma linguagem própria para o cinema brasileiro, em contraposição à ilusão de Hollywood que, fundida com o humorismo radiofônico dos anos 40, havia gerado as chanchadas nos anos 40 e 50. Villa-Lobos, colega de Oswald na famosa Semana de Arte Moderna de 1922, nos últimos anos de vida conheceu Antônio Carlos Jobim, um dos principais artistas da BN, que saudou o maestro como seu mestre maior.
Mas nem tudo era falta de proveito de Hollywood, pois é justamente de sua música o terceiro elemento constituinte da mistura sonora da Bossa Nova. Os standards da canção cinematográfica norte-americana são confundidos por muitos como jazz tradicional, mas são apenas um estilo de música romântica e ocasionalmente dançante que fundia a música das peças de teatro da Broadway com o jazz e a música clássica.
A Bossa Nova também não é sinônimo de jazz, embora as gerações mais recentes não estabeleçam diferença entre jazz clássico, jazz primitivo, jazz fusion, Bossa Nova, standards, música cubana instrumental. Mesmo dentro do chamado jazz clássico havia várias tendências, como o swing, o bebop, e outras tendências pouco conhecidas. Havia o jazz primitivo, quando o estilo era associado aos negros norte-americanos e era mais próximo do blues. Há o jazz clássico, onde se desenvolveu a sofisticação musical. E há o jazz fusion, que abriu caminho para várias tendências. E há ainda estilos que não são jazz mas que absorveram seus elementos musicais de uma forma ou de outra. Confundir tudo isso é o mesmo que confundir, dentro do rock, tendências divergentes como punk, metal e progressivo e juntar no balaio estilos nada roqueiros como o reggae, a música eletrônica e a dance music.
ORIGEM DA BOSSA-NOVA
A palavra "bossa" tornou-se uma gíria nos anos 1930 e 1940 que se referia a qualquer pessoa que fazia alguma coisa para ser admirada e considerada distinta entre as demais. A música que primeiro popularizou a gíria foi "Coisas Nossas", composição de Noel Rosa de 1932. Essa gíria também continuava valendo entre os jovens da década de 1950.
Já a origem do gênero Bossa Nova é controversa. De fato já existia uma música brasileira que oferecia as bases melódicas que depois influenciaram a Bossa Nova. Nos anos 40, os cantores Lúcio Alves e Dick Farney e o conjunto Os Cariocas não faziam exatamente uma pré-bossa, mas as canções românticas e o talento vocal influíram decisivamente no estilo ao qual dois cantores e o conjunto vocal aderiram mais tarde.
A Bossa Nova teria surgido através de Tom e Vinícius, ou de João Donato e Johnny Alf - dois músicos em atividade já no começo dos anos 1950 - , ou então de João Gilberto? Pode-se dizer que houve manifestações diversas desses músicos, talvez nessas sintonias melódicas que parecem coincidentes mas buscam uma renovação espiritual comum. É certo, portanto, que havia gente cansada das tristezas da música de fossa, com suas orquestras tocando melodias tristes e nervosas, com letras que pareciam juntar o legado sentimental do ultra-romantismo com a desilusão de se ver desaparecer um Brasil mais rural e boêmio, prestes a dar lugar a um país moderno, com novas rodovias e indústrias, além de uma nova capital.
Há três diferentes marcos iniciais para a Bossa Nova. O primeiro seria a primeira parceria da dupla Tom Jobim e Vinícius de Morais na peça Orfeu da Conceição, em 1956, da qual saiu a canção "Se todos fossem iguais a você". A parceria, por pouco, não veio a se realizar, porque o primeiro compositor cogitado pelo poeta e diplomata Vinícius era Vadico, maestro que havia sido parceiro de muitas músicas de Noel Rosa.
O segundo marco teria sido uma apresentação conjunta, no Colégio Israelita, no Rio de Janeiro, em 1957, de vários talentos jovens da música, como Carlinhos Lyra, Roberto Menescal, os irmãos Castro Neves e Silvinha Telles. Esse evento, no entanto, era anunciado, a princípio, como uma apresentação de samba sessions, por intérpretes que apostavam na mistura de samba, jazz e standards e que pretendiam introduzir o clima dos concertos intimistas de jazz no cenário musical carioca. Foi a idéia de uma secretária do colégio, provavelmente, de escrever no quadro-negro o convite para os freqüentadores assistirem a um evento de samba sessions feito por uma moçada "bossa nova".
O terceiro marco, no entanto, foi escolhido pela maioria dos historiadores e estudiosos da BN em geral como sendo o marco oficial. Trata-se de dois lançamentos em disco da Bossa Nova, ambos contando com a participação de um músico considerado o mais inventivo do gênero: o violonista baiano João Gilberto. Um é a participação dele na música "Chega de Saudade" (de Tom e Vinícius), no disco Canção do amor demais, da cantora fluminense Elizeth Cardoso. Foi em 1958, e no mesmo ano João gravou seu primeiro disco, o compacto de 78 rpm com a mesma música "Chega de Saudade", no lado A, e, no lado B, "Bim Bom", composta pelo próprio João, que curiosamente na letra o autor define como "baião".
A razão encontrada para escolher 1958 como marco para a Bossa Nova tem a ver também com a escolha que os historiadores e estudiosos do rock'n'roll deram para 1955, embora o rock'n'roll teria existido, como ritmo, desde 1951, se levarmos em conta o programa do norte-americano Alan Freed, Moondog's Rock'n'roll Party, que surgiu naquele ano. A Bossa Nova parecia existir na primeira metade dos anos 1950, quando Johnny Alf já tocava nos bares cariocas e João Donato iniciava sua carreira. Mas foi em 1958 que o ritmo ganhou a repercussão que prenunciava causar, tanto que nomes antes ligados à música de fossa, como Dolores Duran, o letrista e jornalista Antônio Maria e a cantora Maysa, imediatamente aderiram àquela inovação musical.
O otimismo e as doces melodias da Bossa Nova, além dos vocais suaves e por vezes sussurrantes, iam em consonância com o período em que o Brasil vivia na época. Virou clichê juntar o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek, a Bossa Nova e a primeira vitória da seleção brasileira na Copa do Mundo de futebol na Suécia. Mas a impressão dos que viveram 1958 inevitavelmente recorre a tais lembranças.
O movimento Bossa Nova pode ser dividido em três grupos. O primeiro grupo, dos antecessores, que inclui João Donato, Johnny Alf, Os Cariocas, Luís Bonfá, Lúcio Alves, Dick Farney. O segundo grupo é dos que iniciaram e desenvolveram o movimento, como Tom Jobim, João Gilberto, Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, os Castro Neves, Nara Leão, Chico Feitosa, Silvinha Telles, entre outros. O terceiro grupo já inclui os novatos, como Sérgio Mendes, Wanda Sá, Edu Lobo e os irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, e simpatizantes como Sérgio Ricardo, Agostinho dos Santos e Wilson Simonal.
Três eventos lançaram a Bossa Nova ao grande público. O primeiro foi na Faculdade de Arquitetura da PUC, no Rio de Janeiro, localizado na Gávea, perto da estrada em direção ao Joá e Barra da Tijuca, realizado em 1959. O segundo foi realizado na Faculdade de Medicina da então Universidade do Brasil (atual UERJ), na Rua Pasteur, na Urca, no ano de 1961.
No entanto, foi o terceiro e ambicioso evento, realizado no Carnegie Hall, tradicional casa de espetáculos dos EUA, localizado em Nova York, em novembro de 1962. Era um evento promovido pela fábrica de discos norte-americana Audio Fidelity. Diante de tantos problemas na negociação sobre as despesas, os artistas brasileiros preferiram embarcar para Nova York com as despesas pagas pelo Itamaraty. Consta-se que os artistas brasileiros não foram remunerados no evento, tocando praticamente de graça, para divulgar a Bossa Nova no país do Tio Sam.
A apresentação dos bossa-novistas ganhou ampla divulgação pelos meios de comunicação norte-americanos. A uma semana antes do dia do evento, os ingressos foram esgotados. Na platéia, estavam, entre milhares de pessoas, várias celebridades, entre músicos norte-americanos (sobretudo de jazz), atores de Hollywood e até o dramaturgo Tennesee Williams, um dos mais prestigiados do país. Também havia mais de 300 repórteres, entre fotógrafos, jornalistas, cinegrafistas e críticos dos países da América do Norte e do resto do mundo, além de correspondentes vindos do próprio Brasil.
O evento pode não ter sido bem organizado, com alguns transtornos como a posição dos microfones que não permitia ao público ver inteiramente os artistas se apresentando, até porque a organização foi feita às pressas e mesmo os acordos para a viagem dos artistas foram acertados em cima da hora. Se apresentaram no local, além dos maiores nomes da BN, Antônio Carlos Jobim e João Gilberto, os músicos Luís Bonfá, Chico Feitosa, Roberto Menescal, Milton Banana, Maurício Marconi, Sérgio Mendes e seu sexteto, os irmãos Castro Neves e Carlinhos Lyra, acompanhando-os o crítico Sílvio Túlio Cardoso, o empresário Aloísio de Oliveira (como músico, ex-Bando da Lua) e o próprio conselheiro do Itamaraty, Mário Dias Costa. Além deles, se apresentaram artistas brasileiros que já viviam nos EUA, como a cantora Carmen Costa e o músico Bola Sete, artistas norte-americanos ligados à Bossa Nova e contratados pela Audio Fidelity, o pianista argentino Lalo Schifrin e seu conjunto, e o músico jazzista Stan Getz, um dos entusiasmados pelo estilo musical brasileiro.
POLÊMICA - Não era unânime o entusiasmo do público em relação à Bossa Nova. Vale destacar a atitude repulsiva do historiador e estudioso musical, José Ramos Tinhorão, ao gênero, já que sua formação se aproximava do nacionalista e do folclórico, se recusando a admitir a renovação musical da Bossa Nova.
Segundo Tinhorão, a Bossa Nova teria sido o limite extremo da descaraterização do samba a partir de 1946, quando o ritmo brasileiro deixava de se relacionar com o povo dos morros cariocas e de suas raízes regionais para se transformar num ritmo elitista. Tinhorão não reprova as chamadas "aclimatações" de influências musicais estrangeiras, mas vê com desconfiança tendências como a Bossa Nova e os sambas de gafieira e de fossa (samba-canção), respectivamente afetados por elementos de jazz e bolero.
É verdade que a Bossa Nova pouco tem a ver com os morros cariocas, e é fato indiscutível que seus integrantes eram pessoas de classe média, que moravam em edifícios da Zona Sul carioca, e que o estilo tem forte inspiração do jazz norte-americano, um de seus elementos formadores. Mas a presença do elemento samba, mesmo que se distancie do cotidiano dos morros, sensalas ou recôncavos, não anula o ritmo, que é inserido num contexto diferente. A Bossa Nova não substituiu o samba, apenas tornou-se um outro estilo, com sua validade artística e cultural específica. Tem sua beleza, sua expressividade, seu contexto social próprio.
DESFECHO - Como movimento, a Bossa Nova durou até 1964. A essas alturas o estilo havia sofrido uma divisão, pois logo em 1961 Carlinhos Lyra se envolveu no grupo organizador dos Centros Populares de Cultura, da União Nacional dos Estudantes (CPC-UNE) e divergiu do grupo de Ronaldo Bôscoli, fiel à sofisticação bossa-novista. Os CPCs da UNE tinham uma outra proposta, de resgatar a música popular de raiz, como forma de reeducar o povo ante o avanço da chamada indústria cultural. Mesmo assim, Lyra marcou presença no Carnegie Hall e sempre continuou defendendo a Bossa Nova, apenas abrindo sua visão musical para a música de protesto e as raízes brasileiras. Carlinhos também compôs o Hino da UNE, com a letra de Vinícius de Moraes.
A Bossa Nova tornou-se um gênero respeitado internacionalmente. Após o evento do Carnegie Hall, discos norte-americanos de BN foram gravados. Destacam-se o disco que Stan Getz gravou com o então casal João Gilberto e Astrud Gilberto, em 1964, e o disco que Frank Sinatra gravou com Tom Jobim, em 1967, que teve uma continuação no ano seguinte. Os EUA e o Japão se tornaram mercados fortes da Bossa Nova, mais do que o Brasil, onde o estilo é discriminado por parte da mídia e do público.
Com o Golpe de 1964 e sua conseqüente ditadura, o movimento cepecista, com a extinção forçada da UNE e todos os seus projetos (o CPC simplesmente foi obrigado a parar), se aliou ao grupo bossa-novista que, juntamente com as diversas facções culturais brasileiras (inclui até o Cinema Novo), uniram seus propósitos musicais e iniciaram um movimento que ganhou a sigla MPB, Música Popular Brasileira. O termo já existia e até o poeta Mário de Andrade mencionou a expressão nos anos 1930, mas foi em 1965 que o movimento MPB se instituiu, paralelamente ao movimento político do MDB (Movimento Democrático Brasileiro) que, mesmo consentindo com uma armação política da ditadura militar, que sob uma fachada bipartidária permitiu haver um partido de "oposição" bastante moderada, se empenhou em recusar ou pelo menos discordar dos abusos políticos da ditadura.
Com o passar do tempo, porém, a degradação social da ditadura militar impediu que a verdadeira música brasileira tivesse o mesmo poder de projeção ante o grande público. O poder coronelista atacava de música cafona, a indústria cultural explorava a Jovem Guarda, e o Tropicalismo, que a princípio lançava o debate cultural através da Geléia Geral, desistiu do senso crítico e permitiu que a música brasileira se transformasse numa grande gororoba, abrindo caminho, nas décadas seguintes, para a hegemonia do brega-popularesco, herdeira da música brega que assumiu algumas caraterísticas da fase "burguesa" da MPB (1979-1984).
A Bossa Nova continua com sua força musical nos últimos anos, não sendo mais um movimento como era entre os anos 50 e 60. Seus remanescentes continuam se apresentando juntos até hoje, com adesões de nomes mais recentes como Leila Pinheiro e Emílio Santiago. Até o final da vida, Tom Jobim manteve o estilo de composição bossa-novista, com vários clássicos posteriores ao movimento, como "Águas de março". João Gilberto segue a carreira também fiel ao seu estilo. Recentemente, surgiu também uma mistura de música eletrônica e Bossa Nova, chamada drum'n'bossa. E até nomes do Rock Brasil se reverenciaram à BN, com Lobão tendo a música "Me chama" gravada em 1986 por João Gilberto e Cazuza gravando em 1988 sua composição "Faz parte do meu show" com evidentes arranjos bossa-novistas.
Por outro lado, houve diluições da Bossa Nova, gravações oportunistas tocadas por pálidos sintetizadores, ou eventos organizados por emissoras de tevê que são verdadeiros balaios de gatos, que incluem até cantores de axé-music. Até a fórmula pós-tropicalista de gravar sucessos da Jovem Guarda em ritmo de Bossa Nova, de gosto já discutível, dificilmente evitou seu fracasso, pois o pretenso ecletismo não agiu em benefício dos dois gêneros, ofuscando o legado jovem-guardista original e banalizando o estilo "banquinho e violão" de forma gratuita.
Apesar disso, a Bossa Nova autêntica mantém sua aura e valor artístico. O governo carioca a transformou, em 2007, em patrimônio cultural estadual. Seus fãs são criteriosos e exigentes, a não aceitarem as armadilhas do ecletismo banalizante. A verdadeira música brasileira respira, fora das pressões violentas do comercialismo.
FONTES: Portal Samba-Choro, Wikipedia, O Cruzeiro, JBlog (Jornal do Brasil), Biblioteca UNESP.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAMPOS, Augusto de. Balanço da Bossa e outras bossas. 5.ed. Coleção Debates. São Paulo: Perspectiva, 1993.
CASTRO, Ruy. A onda que se ergueu no mar. Novos mergulhos na Bossa Nova. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. A história e as histórias da Bossa Nova. 3 reimp. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 1997.
TINHORÃO, José Ramos. Pequena história da música popular: da modinha à lambada. São Paulo: Art Editora, 1991.
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