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A HEGEMONIA BREGA: A "CULTURA POPULAR" TÃO SONHADA PELAS ELITES


Por Alexandre Figueiredo

Estamos diante de uma grande ilusão. Ela se encontra nas emissoras de TV aberta, nas rádios FM mais comerciais, nas comunidades mais visitadas na Internet, nas páginas virtuais sobre celebridades e nas revistas de fofocas sobre gente famosa. Ela está por quase toda parte, diante de camelôs, lojas de eletrodomésticos, carrões pilotados por "playboys", favelas, botequins, etc.. Parece a genuína "cultura popular", na sua mais legítima e espontânea manifestação.

Mas não é. Trata-se da "cultura" brega-popularesca, que nos últimos 35 anos ganhou sério impulso rumo a uma hegemonia que hoje ameaça a sobrevivência da verdadeira Música Popular Brasileira, cada vez perdendo terreno diante de ídolos cafonas que, ao se tornarem veteranos, apenas tentam imitar os clichês da MPB utilizados pelos "medalhões" (campeões de vendas de discos e freqüentadores de trilhas de novelas da Rede Globo).

A verdadeira MPB corre o risco de se refugiar nos salões universitários, nos museus de cultura popular, e o que poderia significar a rica expressão do legado sócio-cultural de nossos antepassados corre o risco de se apagar nas mentes de futuras gerações, só prevalecendo arremedos muito malfeitos de ritmos regionais, corrompidos por uma leitura cafona de influências estrangeiras mal-digeridas.

O que está por trás dessa hegemonia brega-popularesca, na verdade, é o jogo do poder da grande mídia e das elites rurais e urbanas que, desde o final dos anos 50, lutam para desfazer o projeto político-social que levou o Brasil à evolução social e à autonomia econômica e política. São as mesmas forças políticas, herdeiras tanto da estrutura arcaica da República Velha (1889-1930) quanto do impacto da influência norte-americana pela Política da Boa Vizinhança (1940-1945), de Franklin Roosevelt, e pelo surgimento de duas instituições protetoras do capitalismo mundial na reunião de Bretton-Woods, nos EUA, em 1944: o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial.

Pode parecer paranóico aliar música e política, mas a realidade mostra que, sutilmente, essas relações podem acontecer. E no caso da hegemonia brega-popularesca que os chefes da grande mídia estabelecem, isso acontece, sobretudo se seduz até cientistas sociais que, por ingenuidade, cinismo ou busca de um lugar no estrelato das celebridades, respaldam essas tendências.

Cabe aqui, em breves parágrafos, desfazer os mitos que fizeram a música brega-popularesca em particular e o ideal brega em geral tornarem-se hegemônicos no imaginário brasileiro. Não é uma tarefa fácil, ante a desinformação de muitos e o cinismo de outros, que acreditam que nada de ruim acontece e que a ideologia brega é "tradição inerente" do povo brasileiro. De falácia em falácia, a hegemonia se deu de tal forma que seduz até o público universitário e conta com o apoio de parte dos grandes nomes da MPB. Como explicar essa adesão e uma série de contradições em apenas um texto de Internet, é uma missão difícil, mas procuraremos analisar e questionar a situação.

FOLCLORE, BOSSA NOVA, CPC

Com o projeto político do presidente Getúlio Vargas, a cultura popular autêntica, desenvolvida em suas expressões diversas em várias regiões do país, ganhou seu reconhecimento. Com o projeto nacionalista de Getúlio, em que pese a pretensão ditatorial e autoritária e certas manobras políticas através da mídia, a cultura popular, sobretudo musical, teve o respaldo de artistas e intelectuais que participaram ou foram influenciados pela Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São Paulo, evento que criou uma nova perspectiva para a expressão cultural brasileira.

Veio então a popularização, em caráter nacional, de ritmos populares como o samba, o baião, o maxixe, entre outros. A fase áurea do rádio brasileiro ajudou na difusão desses ritmos, principalmente através de figuras como Luiz Gonzaga, Almirante e Ary Barroso, eles próprios artistas de música popular, mas que, na condição de radialistas, também difundiam outros talentos e contribuíram para o enriquecimento do patrimônio musical brasileiro.



Mesmo a Política da Boa Vizinhança de Franklin Roosevelt não afetou a princípio a autonomia cultural brasileira. A influência da geração modernista de 1922, cujas lições geraram, na literatura, a chamada "geração de 1945" (Fernando Sabino, Clarice Lispector), permitiu que prevalecesse a valorização da identidade brasileira, mais do que qualquer perspectiva nacionalista do governo Getúlio Vargas.

Por isso mesmo, as influências dos derivados do jazz (bebop, swing, foxtrot) e do cinema de Hollywood não significavam a subjugação cultural dos brasileiros aos elementos estrangeiros. A idéia de antropofagia defendida pelo poeta e escritor Oswald de Andrade, outro líder da turma modernista, era praticada pelos artistas que introduziam elementos jazzísticos na música brasileira sem comprometer sua identidade, enriquecendo até a linguagem local.

O auge dessa experiência teria sido o movimento da Bossa Nova. Surgido oficialmente em 1958, através da participação do músico baiano João Gilberto no disco Canção do Amor Demais, da cantora Elizeth Cardoso, na canção "Chega de Saudade", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. No mesmo ano, João lançou seu disco de 78 rpm, incluindo a mesma música e também uma composição do baiano, "Bim Bom". Acusada pelos detratores de ser um ritmo americanizado, a Bossa Nova pode de fato não expressar o samba das favelas, pois seus artistas vieram da classe média e seu reduto eram os prédios da Zona Sul carioca. Mas mesmo assim expressava a cultura brasileira, tinha sua identidade local, simbolizando o Rio de Janeiro, numa linguagem própria, peculiar, respeitada pelos conhecedores de música do país e do mundo.

No entanto, a preocupação com a diversidade cultural levava uma geração de intelectuais e artistas a buscar a recuperação de ritmos populares condenados ao esquecimento. A "antropofagia" é boa para criar novas linguagens, mas não para substituir expressões culturais tradicionais. Por isso, a União Nacional dos Estudantes, que desde o final dos anos 50 se livrou de lideranças "pelegas" (ver MENDES JR.: 1981), ligadas à elite associada às empresas multinacionais, voltando em seguida para diretorias mais democráticas, pensou logo em implantar um programa de conscientização e renovação cultural, através dos Centros Populares de Cultura, os CPC's.

Embora o projeto causasse problema por conta de uma aparente tutela da intelectualidade universitária a projetos que evocavam a cultura popular de raiz, e por mais que os CPC's também sejam polêmicos pelo didatismo excessivo e panfletário de alguns de seus produtos, como na peça O Auto dos 99% (ver SANDRONI: 1982), o projeto, mesmo com todas as suas limitações, era bem-intencionado e influenciado pelos debates em torno do projeto nacional discutido pelos intelectuais nacionalistas do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), entidade ligada ao Ministério da Educação e fundada em 1956 durante o governo Café Filho a partir de uma reestruturação do antigo IBESP (Instituto Brasileiro de Economia, Sociologia e Política). Surgida como entidade neutra, o ISEB viveu uma fase polêmica quando um de seus membros, Hélio Jaguaribe, no livro O Nacionalismo na Atualidade Brasileira, foi acusado de sugerir a quebra do monopólio estatal da Petrobrás. Numa discussão que se tornou desconfortável, prevaleceu a visão nacionalista, principalmente por iniciativa do seu diretor, Alberto Guerreiro Ramos. (ver ORTIZ: 1994 e SODRÉ: 1992).

Era uma época em que o desenvolvimentismo nacionalista da era Kubitschek, depois de um confuso intervalo através do populismo esquizofrênico de Jânio Quadros, inspirava no povo brasileiro a reivindicação de reformas sociais, para complementar o projeto econômico do presidente que idealizou e inaugurou Brasília. A cultura seguia o mesmo ritmo, o que provocava, nas elites que detinham o poder, um descontentamento com os governantes de então.

IPES/IBAD: UM PROJETO NEOLIBERAL PARA O BRASIL

No final dos anos 1950, mais precisamente em 1959, um grupo de empresários, descontentes com a independência política de Juscelino Kubitschek, que, mesmo atraindo investidores estrangeiros para o Brasil, não se submetia em todo às regras do Fundo Monetário Internacional, fundaram uma instituição destinada a pregar um projeto ideológico mais condizente às regras capitalistas e à submissão do Brasil à hegemonia político-econômica dos países mais ricos do mundo. Era criado, naquele ano, o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), sustentado pelas doações financeiras das empresas estrangeiras instaladas no Brasil (como a Coca-Cola e a Esso) e também por empresários brasileiros identificados com o projeto.

O IBAD, criado pelos empresários Gilbert Huber Jr., Glycon de Paiva, Ivan Hasslocher, João Baptista Leopoldo Figueiredo e Paulo Ayres Filho, entre outros, pouco teve a ver com um instituto autêntico. Era apenas uma fachada, na prática era um "partido político da burguesia", destinado a produzir panfletos, seminários, documentários e até patrocinar comícios que desqualificassem o projeto nacionalista e popular vigente no cenário político de então.

Com a instabilidade do governo Jânio Quadros e a crise institucional causada por sua renúncia, que levava ao poder o vice João Goulart, hostilizado pelas classes dominantes, os empresários responsáveis pelo IBAD criaram outro órgão, mais "científico", e também com fachada de instituto, o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), a reforçar de forma mais "racional" os propósitos do IBAD. Também seria um álibi: o IBAD responderia por receber investimentos do capital estrangeiro, o que era ilegal e sacrificaria a entidade, declarada extinta pelo governo João Goulart depois de uma Comissão Parlamentar de Inquérito, em dezembro de 1963.

Aproveitando a crise ideológica na fase presidencialista do governo Jango (1963-1964), o IPES/IBAD aumentou sua ação com o apoio direto ou indireto de um verdadeiro who is who civil-militar, entre militares, empresários e políticos. Esses colaboradores diretos ou indiretos iam desde o poeta Augusto Frederico Schmidt, fundador dos supermercados Disco, até o general e professor da Escola Superior de Guerra, Golbery do Couto e Silva. A base de apoio incluiu também os banqueiros Walter Moreira Salles, Magalhães Pinto (também governador de Minas Gerais), Mário Henrique Simonsen, além do então empresário Paulo Maluf e dos pais do então adolescente Fernando Collor de Mello (mais tarde presidente do Brasil, apoiado pelos que apoiaram o IPES/IBAD), o casal Arnon de Mello e Leda Collor de Mello. Até o oficial do Exército que em 1955 fez um discurso violento durante o enterro do general Canrobert Pereira da Costa, Jurandir de Bizarria Mamede, também apoiou o IPES/IBAD, juntamente com figuras do porte de Roberto Marinho e Antônio Carlos Magalhães.

Os dois "institutos" investiram num versátil esquema de pregação ideológica que tanto desqualificava o nacionalismo pós-Vargas (tratado como se fosse um ante-projeto de um governo comunista no Brasil) como falava das "vantagens" do "moderno" capitalismo neoliberal. Seja pelos adocicados documentários produzidos pelos "institutos", alguns com roteiro do escritor Rubem Fonseca, outros dirigidos pelo fotógrafo francês naturalizado brasileiro, Jean Manzon (célebre parceiro do jornalista David Nasser em O Cruzeiro), seja pelos seminários sobre as "necessidades" de fortalecer o capitalismo no Brasil, pelos comícios em prol da Família Cristã, seja pelos panfletos pedindo aos proprietários de terra se manifestarem contra as ações dos camponeses e sem-terra, as ações do IPES/IBAD ganharam êxito diante de uma sociedade perplexa com a instabilidade política do governo Jango, agravada por incidentes diversos como os boatos de que o Governo Federal decretaria estado de sítio no país e por manifestações de jovens sargentos insubordinados estranhamente anistiados pelo presidente.

No plano musical, o IPES/IBAD não contou aparentemente com um projeto explícito, mas, a julgar de seu projeto ideológico, evidentemente seu descontentamento com os projetos econômicos desenvolvimentista e nacionalista se estendia contra a Bossa Nova e os CPC's, como movimentos de renovação e enriquecimento do patrimônio cultural brasileiro. E qual projeto de "cultura popular" que as elites que respaldaram essas duas entidades neoliberais queriam que prevalecesse, em nome da "liberdade" da influência do "moderno" capitalismo norte-americano no Brasil? Esse projeto "cultural" não seria outro senão aquilo que depois se conheceria como "cultura" brega e todos os seus derivados.

A IDEOLOGIA BREGA

É próprio da ideologia capitalista a exclusão social, através dos privilégios das classes dirigentes. É através da imposição de limitações às grandes massas que as elites atingem um diferencial econômico que reflete nas outras esferas, como social e política. Nas regiões ainda mais atrasadas, é a ignorância e a miséria que garantem a superioridade do poder de oligarquias dominantes.

A ditadura militar se efetivou através das pressões das elites contra a ousadia dos diversos projetos e manifestações existentes no período 1961-1964. Era um projeto de país, através das mais diversas facções sociais - Ligas Camponesas, União Nacional dos Estudantes, Comando Geral dos Trabalhadores, Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Comunidades Eclesiásticas de Base - , que incomodava os interesses capitalistas. Por isso veio uma ditadura militar que desarticulou todo esse projeto, impondo censura e repressão, destruindo com os sonhos das gerações envolvidas. Houve resistência ao projeto ditatorial até 1968, incluindo até confronto entre estudantes e policiais, quando o AI-5 fez o regime militar endurecer cada vez mais.

No plano musical, a ideologia brega surgiu juntamente com o IPES/IBAD. Não era exatamente um projeto desses dois "institutos", que não tinham uma visão determinada de indústria cultural, até porque ela estava num processo incipiente no Brasil. A televisão era incipiente e sua popularização só começou a ganhar impulso maior depois de 1960. A chamada "cultura pop", nos moldes do hit-parade norte-americano, praticamente inexistia no Brasil. Por isso mesmo, não houve um projeto oficial de "cultura popular" por parte dos dois "institutos".

Todavia, nas regiões dominadas por oligarquias, um determinado tipo de música e um determinado ideal de vida eram transmitidos pelos veículos de comunicação controlados pelos chefes regionais, chamados comumente de "coronéis". Era um estilo de vida marcado pelo conformismo, ou pela indignação resignada, e pelo consolo através do sexo com prostitutas ou do alcoolismo. A sua música era caraterizada por arremedos de boleros, serestas ou valsas, muito mal cantados, mal compostas e cujas letras falavam sobretudo de desilusões amorosas de forma bastante exagerada.

Os primeiros ídolos bregas surgiram no final dos anos 50, coincidindo com o surgimento do IBAD. Os dois fatores podem não estarem associados um ao outro, mas têm um mesmo motivo: o descontentamento das classes dirigentes com os rumos do desenvolvimentismo e do nacionalismo. Não por acaso, a evolução do IPES/IBAD à ditadura militar e de todos os episódios relativos às forças políticas, inclusive civis, que a apoiaram e que depois tomaram as rédeas da "democracia liberal", coincidem muito, na época, com as fases da evolução da música brega no país.

A ideologia brega também representa a própria inferiorização cultural brasileira, num julgamento etnocêntrico das elites sobre a "cultura popular". Com o padrão brega, o povo é visto como medíocre, infantilizado, uma horda de "bons selvagens", e a defesa que muitos fazem da música brega indica um preconceito e um julgamento de valor burgueses, para os quais a idéia de "cultura popular" é sempre associada à mediocridade, ao malfeito, quando a história da verdadeira cultura popular nada disso significava. A verdadeira cultura popular era mais nobre, altiva, criativa, produzia conhecimento, era insubmissa nas suas diversas atividades, literárias, artesanais, musicais, etc.. Já a "cultura popular" do brega é de baixa qualidade, não produz conhecimento porque é só uma diversão, uma distração, uma auto-esculhambação do povo pobre tão do deleite dos poderosos, por isso ela é submissa ao poder coronelista, que muitas vezes sustenta e investe nos seus ídolos.

Vale lembrar que o termo "brega" vem dos anos 70, não antes de 1972, quando um pedaço de placa da Rua Padre Manuel da Nóbrega, em Salvador, reduto de botecos e prostíbulos, só mostrava as últimas cinco letras do sobrenome do famoso padre, inspirando os transeuntes a falar o "novo nome". Mesmo o termo "cafona" não existia antes do início dos anos 60 e é invenção do jornalista Carlos Imperial. Mas os elementos constituintes daquilo que depois se conheceu como música brega já existiam, e poderiam ser classificados então como "piegas" ou "patéticos".

A ideologia brega transformava a desgraça humana num circo. Tornava o povo brasileiro culturalmente impotente. Dava amplos poderes às rádios controladas pelos "coronéis", que difundiam esse tipo de música. A ideologia brega, com seus elementos patéticos, como o consolo através das prostitutas e bebidas alcoólicas, o comércio de produtos piratas, o astral de dramalhão do público e dos intérpretes envolvidos, representa um controle social em que se produz a partir da desgraça humana um espetáculo que serve para o deleite das classes dirigentes e um divertimento para as demandas abastadas. A ideologia brega não tem relevância cultural, a música brega, comercial até a medula, não tem relevância artística, só servindo como entretenimento para um público amestrado pelo poder coronelista.

O ERRO DE PAULO CÉSAR ARAÚJO

A visão "oficial" da música brega, por si só, é repleta de erros. Erra, em primeiro lugar, ao julgar a origem da música brega com a ótica de hoje, como se a expressão fosse mais antiga que é. Erra por creditar erroneamente como "brega" qualquer coisa derivativa dos boleros ou serestas. Erra por creditar como "fundadores" da música brega nomes de reconhecido valor artístico, mas situados num contexto sócio-cultural diferente do atual, como Vicente Celestino, Lupicínio Rodrigues e Nelson Gonçalves.

Os defensores do brega acusam os detratores de serem preconceituosos, mas a defesa do brega, em si, é carregada de muito preconceito. Julgam o passado como se ele fosse, por si só, cafona, sem verificar contextos sociais e julgando os fatos com os padrões ideológicos de hoje. Generalizam um gênero musical como o bolero como se fosse totalmente "cafona". O mesmo com as serestas. Tentam promover o brega para o bem e para o mal, nivelando de qualquer maneira a música de gosto duvidoso a nomes de qualidade mas associados a estilos mais antigos, seja para "elevar" o brega, seja para "depreciar" os verdadeiros artistas de boleros e serestas, que neste caso possuem sua beleza artística.

A música brega - não com este nome, mas com suas caraterísticas - surgiu no final dos anos 50. Não eram os boleros e serestas em si que inspiraram o brega, mas os arremedos feitos em nome deste estilo, feitos de forma retardada, quando a música de fossa autêntica já havia cedido lugar à Bossa Nova, no mainstream dos centros urbanos. O brega não é eterno, é retardatário e atrasado. Já os boleros e serestas podem ter tido seu tempo áureo outrora, mas contam ainda com beleza e valor artístico.

Não bastassem esses erros, tão comuns na "historiografia" do brega - historiografia não muito diferente daquela que "heroificava" apenas meros personagens do cenário político dominante na História do Brasil - , há o sério erro de Paulo César Araújo, que colocou um dado insólito no seu livro Eu não sou cachorro não, que fala sobre a música brega brasileira.

Araújo tentou inverter o que a realidade histórica registra e que já foi fartamente mencionado sobretudo nos relatos históricos após o fim da ditadura militar. Tentou creditar a MPB autêntica - que o autor define pelo irônico apelido de MPBzona - como respaldo à ditadura militar, e tentou promover os ídolos bregas, que na verdade são seus ídolos pessoais de infância, como se fossem "combatentes" do poder ditatorial. O autor tenta não falar de "estética musical", e diz "reconhecer" que os ídolos bregas são "despolitizados", mas na sua retórica ele tenta criar um "ativismo político" para seus ídolos, como um fabricante de bonecos, no conto de fadas, tenta dar vida a seus brinquedos.

A manipulação, mesmo apresentando dúvidas quanto sua veracidade, acabou convencendo uma platéia educada pelas avalanches popularescas de Fausto Silva, Ratinho, Xuxa e Gugu Liberato. Embora Paulo César Araújo afirme, em suas entrevistas, que o seu livro sobre a música brega originalmente era uma tese de Mestrado que não recebeu apoio algum da comunidade acadêmica, e que até hoje ele se sente um "excluído da mídia" (recentemente ele teve problemas com uma biografia não-autorizada do cantor Roberto Carlos), seus argumentos sobre a música brega ganharam ressonância na grande mídia.

Pouco importa se, na verdade, a música brega se fortaleceu não porque agiu contra o AI-5, mas porque atuou como instrumento deste, através da difusão maciça de rádios e serviços de auto-falantes cujos donos se alinhavam com a ditadura militar ou, no mínimo, com os comandantes regionais que apoiavam o regime militar. E pouco importa se, com as campanhas pela anistia e pela redemocratização, os ídolos bregas estejam totalmente alheios a isso. A visão de PC Araújo, mesmo falaciosa, tornou-se "oficial" e condizente com o cenário da grande mídia de hoje.

Afinal, a música brega gerou uma linhagem que, primeiro, envolveu "investimentos estrangeiros" (os primeiros estilos bregas imitavam boleros, valsas, música italiana, depois o rock da linha bubblegum e por último a soul music e a disco music nos anos 70 e 80) e depois envolveu arremedos de cultura brasileira, como se vê na axé-music, no pagode romântico, no pagode pornográfico, no breganejo, no forró-brega e até no "funk carioca", que começou imitando escancaradamente o miami bass (capital estrangeiro) e depois passou a incluir sons de teclado imitando batuques de umbanda. A idéia das elites que promovem esse nível de música é forjar uma suposta “nacionalidade”, um projeto neoliberal de país cuja “cultura popular nacional” se enquadra dentro dos padrões do hit-parade norte-americano junto à mediocridade artística dos intérpretes envolvidos, prova da ignorância popular que garante as estruturas de privilégio e poder.

A MÚSICA BREGA-POPULARESCA DE HOJE: OS "CPC'S" DO IPES

A própria tendência da grande mídia que, apostando no lema "Sem Alternativas" da ex-primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, tenta se vender como a "alternativa" para si mesma, também favoreceu a estratégia da hegemonia brega. Integrante do establishment musical brasileiro, a música brega-popularesca, que envolve tanto as tendências tradicionais da música brega (ainda apegadas à influência estrangeira) quanto suas formas "modernas" e "regionais" (axé-music, forró-brega, pagodão, breganejo etc.), agora tenta nos convencer de que "nunca fez parte" desse establishment.

Esse discurso chega ao absurdo de adotar posturas contraditórias. Os ídolos bregas-popularescos, mesmo fazendo sucesso nas rádios, TVs, revistas e Internet, se julgam "excluídos". Quando admitem o sucesso dominante, atribuem a rejeição do público intelectualizado a eles como se fosse "inveja". Se julgam "vítimas de preconceito", mas a rejeição que recebem vem de pessoas que, mesmo a contragosto, conhecem profundamente seu repertório, porque circulam ou permanecem em lugares onde esse tipo de música é executado, até com certa insistência.

Muitas vezes esse discurso de "preconceito" apenas encobre a natural vocação capitalista dos ídolos bregas de outrora e dos modernos bregas de hoje, que lotam até rodeios, bailes "funk" e micaretas, vendem discos aos milhares e aparecem em programas de rádio e TV de grande audiência, em ampliar seu mercado. Por isso esse papo de "preconceito" e "exclusão social" não passa de pretexto para a revolta de tais ídolos em não aparecerem na programação da Nova Brasil FM e de não ganharem reduto estável nos meios mais cultos das Universidades Federais, se contentando em aparecerem mais nos eventos promovidos por universidades e faculdades privadas que, capitalistas, são mais abertas a negociar com os popularescos.

Num país de profundas desigualdades sociais, de impune corrupção política e com o poder de ferro da grande mídia a definir os gostos e costumes da população, o brega-popularesco prevalece como se fosse a "música popular" oficial. Mas ela não é. A música brega-popularesca, com seu gigantesco espetáculo da mediocridade musical, da canastrice artística e da arrogância de ídolos medíocres iludidos com seu sucesso, não é mais do que a "música popular" que as elites tanto sonharam, estimulada pela ditadura militar e fortalecida principalmente pelos governos de Fernando Collor (1990-1992) e Fernando Henrique Cardoso (1994-1998 e 1998-2002), não é mais do que a resposta, ainda que tardia, que as forças remanescentes que integraram o IPES/IBAD encontraram para afastar a influência dos CPC's e da Bossa Nova, obrigando a música brasileira autêntica se refugiar entre o público mais intelectualizado, a mídia alternativa e a tutela passadista do folclore.

FONTES: Wikipedia, Preserve o Rádio AM, Rádio AM Nordeste.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARAÚJO, Paulo César. Eu não sou cachorro, não. Rio de Janeiro: Record, 2001.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. A história e as histórias da Bossa Nova. 3 reimp. São Paulo, Companhia das Letras, 2006.
COELHO, Teixeira. O que é indústria cultural. Série Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1999.
DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado. 6ª ed. Petrópolis: Vozes, 2006.
IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1987.
MENDES Jr., Antônio. Movimento Estudantil no Brasil. Série Tudo é História. São Paulo, Brasiliense, 1981.
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. 5ª ed.. São Paulo: Brasiliense, 1994.
PIRES, Luciano. Brasileiros Pocotó. São Paulo: Panda Books, 2004.
SANDRONI, Paulo. O que é a mais valia. Série Primeiros Passos.São Paulo, Brasiliense, 1982.
SODRÉ, Nelson Werneck. A ofensiva reacionária. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1992.
TAME, David. O poder oculto da música. Tradução Octavio Mendes Cajado. São Paulo: Cultrix, 1997.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 1997.

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