Por Alexandre Figueiredo
O avanço da música brega-popularesca no Brasil de hoje é um retrato da crise sócio-cultural em que se vive. O caos aéreo que, em uma diferença de dez meses, provocou duas tragédias sérias com aviões. A corrupção política mostra seus personagens constantes e sucessivos. O governo Lula, apesar de sua inclinação reformista, pouco fez de definitivo para superar o neoliberalismo do presidente anterior, Fernando Henrique Cardoso, levando em conta também que Lula está em seu segundo mandato.
Embora muitos intelectuais vejam o brega-popularesco - desde o conservador breganejo de Chitãozinho & Xororó e Zezé Di Camargo & Luciano ao agressivo "funk" de Tati Quebra-Barraco - uma possibilidade de uma nova e moderna música brasileira, o deslumbramento termina quando percebemos as contradições que o brega-popularesco, mesmo sob o mais bem-intencionado pretexto de "diversidade cultural", apresenta, comprometendo sua validade como a cultura popular definitiva de nosso país.
Diversos textos de vários autores passam a exaltar a música brega-popularesca, muitas vezes com mensagens "tranqüilizadoras" mais confortáveis e conformadoras que qualquer programa religioso de fim-de-noite. Não precisamos dizer os autores, até porque tanto faz se os nomes deles se perdem ou não. Geralmente são cientistas sociais, jornalistas, artistas, antropólogos e sociólogos, os primeiros embasbacados com aquilo que eles vêem como manifestações do povo pobre, os segundos e terceiros dotados de um paternalismo classe média para com o povo, os quartos e quintos incapazes de criar teses acadêmicas e perdidos sob a polêmica da validade ou não da "história das mentalidades". Em todo caso, porém, são pessoas deslumbradas com a cafonice reinante, dotando-se de ingenuidade e boa-fé diante dos fenômenos da grande mídia, cuja presença de mídia eles chegam a ignorar.
Podemos no entanto citar o nome de Celso Branco, cantor e historiador. Em seu texto sobre a decadência da Música Popular Brasileira, Celso faz até um histórico bem-intencionado dos momentos em que se atribuiu crise e decadência na música brasileira ao longo do Século XX, mas se esqueceu de que a recente música brega brasileira não está à margem da grande mídia brasileira. Evidentemente, Branco, um historiador de um Estado do Sul/Sudeste, indivíduo de classe média e tendo sido cantor e ator integrante de um cenário cultural alternativo carioca, não viu a música brega e seus derivados atuais como um fenômeno de "massa", talvez por não circular na Baixada Fluminense nem no Norte e Nordeste brasileiros.
A intelectualidade exalta o brega-popularesco porque, em seus cômodos apartamentos, tanto faz, para eles, se o carnaval de Salvador não guarda diferenças, ao seu ver, com a rebelião popular de Canudos. Ou que o "funk" carioca seja visto como uma suposta revolta contra a "França Antártica" da Bossa Nova. Tanto atribui-se, aliás, aos bossa-novistas e seus discípulos da MPB dos anos 60-70 um certo paternalismo em relação à cultura popular, mas poucos conseguem reconhecer no brega-popularesco um fruto desse mesmo paternalismo. A própria classe média que produz MPB, não obstante, estende seu paternalismo aos ídolos brega-popularescos de ontem e de hoje, de Odair José e Waldick Soriano a Zezé Di Camargo e MC Leozinho.
ALIENAÇÃO INTELECTUAL
Muita dessa abordagem intelectual a favor do popularesco obedece a uma perspectiva restritiva de sua classe e do lugar onde vivem. E mostra que também existe bairrismo em lugares considerados cosmopolitas, não um bairrismo ignorante ou pedante, mas um bairrismo que talvez reconheça as últimas novidades de Paris e Nova York, mas que não consegue identificar as armadilhas mais sutis nos cafundós do Nordeste ou mesmo das zonas rural e suburbana de seu Estado.
É muito fácil enxergar no "funk" uma dócil "rebelião cultural" quando se está morando em um apartamento do Leblon com vista para o mar. É fácil desconhecer as artimanhas do coronelismo dos latifundiários rurais ou dos líderes políticos dos subúrbios quando se está num confortável flat nos Jardins (área nobre de São Paulo) ou num condomínio à beira-mar na Barra da Tijuca (área nobre do Rio de Janeiro). A miopia burguesa vê o sertão e os subúrbios à distância, tanto na rejeição quanto na apreciação paternalista do povo pobre. No fundo é o mesmo preconceito, tratar os pobres como se fossem animais, sejam eles selvagens ou domésticos.
Trata-se de uma alienação intelectual a atitude de intelectuais e artistas em cortejar o brega-popularesco, que nada mais é do que uma simples música de mercado, sem qualquer relevância cultural, ainda que de alguma forma expresse o contexto sócio-cultural em que vivemos. No entanto, o paternalismo ingênuo tenta crer e nos fazer crer que essa modalidade da "cultura de massa" é o novo "folclore popular".
No entanto, mesmo esse paternalismo se configura num contexto novo, surgido em meados dos anos 90, que mostra a complexidade da onda brega-popularesca, porque nem o paternalismo para com os pobres, nem o deslumbramento em relação ao popularesco e nem a influência dos donos do poder na projeção desse tipo de música, apresentam as caraterísticas manjadas de antes. Mesmo o "jabaculê", alcunha dada para a prática ilícita de promoção de eventos ou fenômenos de mídia, apresenta caraterísticas novas, pouco assimiladas e nada discutidas pelos setores dominantes da opinião pública.
RUPTURA COM A LINHA EVOLUTIVA DA MPB
Verificando com atenção o histórico da música brega-popularesca, vemos que ele constitui num processo de ruptura com a linha evolutiva da música popular brasileira. Ela equivale, ao plano musical, ao Plano Nacional de Desenvolvimento implantado pela ditadura militar, onde se utiliza, a princípio, do capital estrangeiro para adotar um modelo econômico conservador, excludente para a população mas bastante propício para o empresariado nacional e estrangeiro.
Os primórdios da música brega estabeleciam uma imitação de boleros, mariachis, e música country. Aproveitavam a roupagem das antigas serestas dos anos 40, não para renovar uma tendência que foi ultrapassada, em meados dos anos 50, pela sofisticação musical da Bossa Nova, mas para imitar, fora de qualquer contexto sócio-cultural, clichês antigos de uma forma grotesca e rudimentar. Não se tratava de saudosismo, nem de um neo-bolero à brasileira, e muito menos se cogitava ser uma neo-seresta, numa sociedade que naturalmente não se inclinava a isso. A primeira metade dos anos 60, época dos primeiros vestígios do que uma década depois se convencionou a chamar música brega, a música brasileira se ocupava pela Bossa Nova, no Sul/Sudeste, e pela renovação de ritmos regionais antigos, como o samba-de-roda e o baião.
Não fosse a ditadura militar, teríamos passado dos CPC's para um novo movimento de cultura regional. Seria um movimento que florescesse ao longo de cinco ou dez anos, a princípio respaldado pela classe média de esquerda que comandava os Centros Populares de Cultura. Era um paternalismo, mas aí havia uma admiração sincera da cultura popular, por parte dos intelectuais de esquerda. Tinha seus equívocos, mas nada comparáveis aos que a intelectualidade de hoje expressa em relação ao brega-popularesco.
Essa possível evolução da música popular não se efetivou porque, com a ditadura militar, se estabeleceu um modelo político, econômico e cultural de linha conservadora, e se a MPB continuou resistindo no período de abril de 1964 a dezembro de 1968, não foi porque ela era a "música oficial" da época, pois estava neutralizada pela Jovem Guarda e pelos falsos boleros da música cafona (a futura "música brega", pois este nome então não existia). Foi porque a intelectualidade de esquerda tentou expressar sua revolta durante a fase branda da ditadura, cobrando a democracia que os militares prometiam recuperar mas não o fizeram.
DESIGUALDADES REGIONAIS
Seria ingênuo afirmar que a Bossa Nova atingia o Brasil inteiro. Na interpretação equivocada da realidade brasileira dos anos 90 para cá, procurou-se sepultar a antiga tese da existência de desigualdades regionais. Com o fim do regime comunista, a hegemonia da ideologia neoliberal, agora sob o signo da globalização, a mídia adotou um discurso positivista, retomando a tradição de Auguste Comte (inspirador da frase "Ordem e Progresso" da bandeira brasileira), dentro do contexto capitalista atual. Dessa forma, passou-se a acreditar que, ao invés das desigualdades regionais - com o Sul/Sudeste prósperos diante do Norte/Nordeste/Centro-Oeste problemáticos, existe apenas a inocente "diversidade regional", como se os conflitos de terras, o analfabetismo e o colapso na saúde pública fossem apenas probleminhas banais. E como se o coronelismo fosse, na verdade, uma doutrina de "grandes líderes carismáticos", para os quais a opinião pública é levada a manifestar respeito, admiração e obediência, embora nem sempre concordando com os seus métodos.
Era como se não houvesse necessidade de existência da SUDENE, Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, órgão criado durante o governo Kubitschek (1956-1961) e extinto durante os governos FHC (1994-2002) para tirar a região nordestina do atraso. Era como se a região semi-árida fosse apenas cenário de filme do Cinema Novo e como se bastassem apenas as propagandas turísticas das capitais litorâneas para dar uma ilusão de prosperidade do Nordeste brasileiro, principalmente Salvador, uma cidade com pretensões de ser o "Caribe brasileiro".
No entanto, na prática essas desigualdades existem. O interior do Nordeste e as regiões Norte e Centro-Oeste vivem uma grave situação de atraso expressa sobretudo na zona rural, com seus conflitos de terra e com as distorções entre uma minoria de proprietários de terra ricos e dotados de sofisticada tecnologia e uma maioria de pessoas pobres e analfabetas que não conseguem obter o necessário para suas vidas. A grave corrupção política, marcada pelo provincianismo que permite os envolvidos de uma relativa privacidade para seus atos ilícitos, também é típica. Nas capitais do Nordeste, a imagem de "paraísos litorâneos" também não as livra do atraso em relação às cidades do Sul e Sudeste. As opções de lazer e serviços deixam claro que até uma cidade como Salvador - turisticamente envolta em um infeliz complexo de superioridade que a faz ser deixada para trás, em vários aspectos, por cidades como Belo Horizonte e Recife - encontra problemas que contradizem a pretensa imagem de "capital do mundo" ou "paraíso brasileiro" que a capital baiana promove no seu marketing turístico.
A própria capital baiana, assim como outras capitais como Belém, Cuiabá e Manaus, viraram estereótipos culturais. A nova mentalidade das cidades pós-modernas, um fenômeno global, conforme descrevem Sharon Zukin (ZUKIN, 2000) e Lia Motta (MOTTA, 2000), revela a adaptação dos centros e demais lugares históricos à idéia de mercadoria, através do modelo "fachadista", do "enobrecimento" das áreas históricas, com o objetivo de reforçar o turismo a partir do consumo cenográfico das paisagens históricas. Nessa perspectiva, as nações são tratadas como verdadeiras empresas, que se concorrem na sua projeção mundial através de um discurso historiográfico correto em muitos aspectos, mas também carregado de estereótipos relacionados a seus marcos históricos mais notáveis.
No Brasil, por exemplo, prevalece o estilo colonial barroco, como paradigma do passado histórico nacional. Mas muito de seu patrimônio histórico é diluído por obras que muitas vezes não oferecem continuidade nem diálogo com seu passado histórico, com suas variações históricas e nem como os diversos agentes históricos ao longo do tempo. Seguem a mentalidade neoliberal da ruptura, de romper com o passado tal como se expulsa um cachorro doente de um terreno. Inferindo no texto da socióloga Sharon Zukin, os centros históricos pós-modernos parecem se destinar mais a um misto de museu com Disney World, a um ambiente de consumo de referenciais históricos, apoiado por estabelecimentos comerciais que tornam tais cenários rentáveis.
Esse discurso vê a diversidade cultural apenas como identidades formais, apenas como "diferenças" a serviço de uma pretensa igualdade "social" prevista pela globalização capitalista. É apenas um "amadurecimento" do processo de globalização, que nos anos 90 se impunha como um fenômeno de expansão dos referenciais "mundiais" relacionados com a tecnologia e a "modernidade" do Primeiro Mundo, adaptado depois para os contextos regionais, sobretudo mediante a negociação entre o empresariado transnacional, os empresariados nacionais e as autoridades nacionais.
A partir disso, discute-se se as manifestações culturais deveriam ser confinadas em museus, ou então expostas, por encomenda das autoridades, ao vislumbre dos turistas. Será que a diversidade cultural, consagrada por sua espontaneidade cotidiana, deverá estar a serviço de políticas de turismo, ou do mercado "patrimonial"?
Na música brasileira, as discussões deveriam ir mais longe, porque a chamada "música popular" que faz sucesso nas rádios e que nos últimos 35 anos se ancora definitivamente na idéia de cafonice, de precariedade artística e de espetáculo "rudimentar", também é uma forma estereotipada de ver a cultura popular.
ESTEREÓTIPOS DIVERSIFICADOS
A "verdadeira música popular brasileira" que intelectuais como Hermano Vianna e Paulo César Araújo defendem apresenta sérias contradições para o atributo aqui apresentado pelas aspas. Como o próprio mercado turístico apresenta. O mesmo caráter expositivo das mulatas dançantes, em eventos de samba arranjados exclusivamente para os turistas, se vê na música popularesca. Eventos encomendados, que nada têm de espontâneos. O que foi o fenômeno É O Tchan senão a aplicação dessa mesma idéia, com a diferença que, no lugar da exposição ao vivo para os turistas, está a exposição para quaisquer pessoas através de programas de auditório, reportagens de imprensa e nos próprios CDs.
E isso é muito diferente da verdadeira música popular. Não dá para comparar o registro fonográfico das manifestações musicais indígenas com o novo CD do Exaltasamba ou de Zezé Di Camargo & Luciano. O primeiro caso, das músicas indígenas, representa o uso de um recurso para perpetuação cultural de um povo. O segundo caso, dos ídolos de massa, é apenas um produto a mais para reforçar os estereótipos bem-sucedidos pela mídia e pela indústria do entretenimento.
O brega-popularesco é visto ingenuamente como "verdadeira cultura popular" porque muitos crêem numa "cultura popular de resultados". Vendeu muitos discos, lotou estádios, apareceu em revistas que venderam muito, tudo isso em cinco anos seguidos e sem sofrer algum arranhão definitivo (fora coisas "pequenas" como testes de DNA para supostas relações extra-conjugais com fãs que geraram filhos, ou então as críticas negativas de sempre na imprensa musical), então virou "autêntica cultura popular". Essa argumentação, altamente discutível, leva em conta apenas os aspectos quantitativos e, na prática, apenas cria um maniqueísmo para desafiar a consagrada MPB que intelectuais de classe média e perfil universitário lançaram nos anos 60 e que prevalece até hoje. Isso porque a "verdadeira MPB" atribuída ao brega-popularesco está muito longe de ser a "verdadeira MPB".
Trata-se de uma música de mercado. Embora isso pareça, para muitos jovens educados no Brasil neoliberal pós-1990, o mesmo que dizer que todo suco tem água, é bom ressaltar que a influência dominante da economia capitalista no cotidiano brasileiro não pode ser vista como um processo naturalmente positivo, porque ela muitas vezes compromete os interesses sociais e só os beneficia quando existe alguma rentabilidade para as partes interessadas. O brega-popularesco trabalha com uma lógica capitalista que contradiz qualquer pretensão artística, não por causa da rentabilidade. É porque, como toda "cultura" comercial, o brega-popularesco toma o dinheiro como um fim e não como uma conseqüência que as produções artísticas e artesanais autênticas possuem. A verdadeira arte tem o fim social como objetivo, embora renda dinheiro. A "arte" comercial não possui fins sociais, embora que, pelo marketing, vale qualquer apelo, até filantrópico: mas tudo vale mais pela visibilidade e pela grana como meta maior.
Além disso, a música brega-popularesca desenvolve e se sustenta por estereótipos. Ela é mercadológica por excelência, mesmo quando alguns de seus ídolos são "injustiçados", ignorados aparentemente pela mídia. E as condições sociais não deixam mentir quanto ao desenvolvimento de estereótipos e de clichês.
O próprio contexto de desenvolvimento da música brega confirma. Ela se desenvolveu em ambientes de degradação social, como prostíbulos, botecos e residências caindo aos pedaços. Por outro lado, seus patrocinadores e empresários pertenciam à classe dominante das regiões rurais ou suburbanas do interior do país, e financiaram o sucesso dos ídolos bregas, embora não os tenham como seus subordinados diretos.
A música brega se propiciou em ambientes de degradação social, onde os valores sociais e morais se desmantelaram. O brega se constitui num amontoado de cacos culturais, onde a identidade nacional se torna confusa com a perda de referenciais devido ao controle social do coronelismo. Não há, também, um desejo de ruptura com o poder dominante, idéia chave da autêntica cultura popular mas inexistente na música brega. Esta, na verdade, depende do poder dominante para se prevalecer, seja para se lançar no mundo da fama, seja para usar platéias abastadas para forjar alguma credibilidade.
Sem uma nacionalidade definida - uma vez que não há continuidade com o processo evolutivo cultural brasileiro, mas apenas uma tardia adesão a modismos radiofônicos superados - , a música brega estabelece um estereótipo bem ao gosto dos poderosos de cada região: a de um fracassado resignado, apesar de "revoltado" e "angustiado", com um visual às vezes inspirado no cinema norte-americano (Waldick Soriano, por exemplo, remete a um misto de detetive com chapéu de caubói), mas com um apelo provinciano que é o único elemento interiorano que sobrevive nessa "cultura popular" patrocinada pelo coronelismo.
O brega veio juntamente com as pressões anti-nacionalistas do governo Juscelino Kubitschek - que, apesar de ancorar seu Plano de Metas na atração de capital e empresas estrangeiras, que instalaram suas filiais no país, também tinha acenos com o trabalhismo tendo como vice o petebista João Goulart - , de instituições como o IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e outras organizações de direita associadas. Uma dessas organizações foi o braço-irmão do IBAD, o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), que iniciou sua ação em 1962, apesar de fundado em novembro do ano anterior. Na mesma época, vieram os primeiros ídolos bregas, como Waldick e Nelson Ned.
Os primórdios da música brega encontram consonância com o modelo econômico que o IPES, o IBAD e demais entidades associadas reivindicavam para a política e a economia. No plano político, rejeitava-se o festivo liberalismo quase populista de Kubitschek e o populismo arrojado de Jango, visto pela direita como um risco de adesão ao comunismo. No plano econômico, assustavam a direita a autonomia do projeto de Kubitschek em relação ao FMI, com o qual chegou a romper em 1959, e as estatizações do governador gaúcho Leonel Brizola em 1959 e 1962 de duas empresas de energia elétrica controladas pelos norte-americanos. Brizola era cunhado de Jango e um de seus principais aliados políticos. Aparentemente, o projeto econômico de Jango, integrado ao plano de reformas de base, não tinha algum item "ameaçador", mas a direita, querendo desmoralizar Goulart, simplesmente classificou as reformas de base como "comunistas".
No plano musical, o projeto de Kubitschek tem paralelos com a Bossa Nova, no sentido de haver uma possibilidade de nacionalização cultural em uma tendência musical ancorada no jazz norte-americano, tal qual a economia buscava uma autonomia nacional com investimentos estrangeiros. E o projeto janguista tem paralelos com a música de protesto, com ritmos regionais resgatados ao apreço popular, era um projeto tutelado pela classe média universitária que poderia possibilitar uma futura renovação da cultura popular, tal qual o projeto político de um fazendeiro gaúcho que tutelava os sindicatos poderia, mesmo com a reação de discordância da esquerda não-pelega, possibilitar uma reavaliação dos projetos políticos voltados às classes populares.
A negação desses dois modelos pelas forças conservadoras brasileiras, representada sobretudo pelas oligarquias rurais, pelas elites emergentes suburbanas e pela burguesia nacional, fez as pressões dessas forças resultarem no golpe militar de abril de 1964, que implantou um modelo político e econômico diferente daqueles outros. Politicamente, se a ditadura militar foi implantada sob o apoio do Departamento de Estado dos EUA, e seu projeto econômico, destinado a congelar salários e fortalecer a industrialização pelo aumento do poder e de ação das empresas estrangeiras no país, a música brega representou fenômeno semelhante, onde o hit-parade norte-americano determinava, de cima para baixo, o cardápio "cultural" dos primeiros ídolos bregas, que traduziam os boleros e mariachis americanizados e a música country em uma música comercial de cunho conformista, cujos lamentos se restringiam a desilusões amorosas.
A música brega era, portanto, "entreguista". Era uma espécie de equivalente musical ao modelo econômico de Roberto Campos e Otávio Bulhões, que "congelava" melodias e submetia o processo artístico à lógica de mercado, dentro do contexto provinciano do interior brasileiro.
O próprio povo dos subúrbios e do interior do país foram entregues ao estereótipo. Na ditadura militar, os combates ideológicos vinham por conta da classe média universitária, esclarecida sobre a realidade nacional e, ainda que de forma paternalista, era solidária com as causas populares. Há toda uma desinformação, no entanto, quanto ao alcance da música popular cepecista da Era Jango e também da Bossa Nova. No interior do país, essas músicas tinham pouquíssimo alcance e os ídolos bregas tiveram nessas regiões a possibilidade de se sobressaírem, seja à música popular autêntica que envelhecia sem deixar herdeiros próprios, e a única possibilidade de resgate da canção popular, mesmo regional, restrita aos circuitos universitários das áreas urbanas.
A queda de auto-estima da população pobre já é expressa pelas restrições da realidade econômica, sempre excludente para as classes trabalhadoras, com baixos salários, péssima escolaridade, um serviço de saúde deficiente e não raro condenados a enfrentar um mercado informal, sem carteira assinada nem garantias trabalhistas, apenas para conseguir o dinheiro para a sobrevivência sua e de familiares. Com a ditadura militar, nem mesmo o paternalismo populista que, mesmo discutível, sugeria um presumível atendimento aos anseios populares autênticos, as populações pobres teriam como alternativa. Para o povo, agora, resta apenas o paternalismo populista dos "coronéis" que dominam as regiões rurais - num contexto bem mais restritivo e elitista que o indicava o paternalismo do governo Jango - , lideranças locais que patrocinaram a derrubada de Jango e a ditadura militar.
Então a própria realidade se serviu para criar os estereótipos do "novo povo", bem ao sabor daqueles que iriam promover a hegemonia da cafonice cultural no país, com meio eficaz e verossímil de controle social e de apropriação cultural por parte das forças conservadoras. Elas é que passaram a ditar as normas do que deve ser a "verdadeira cultura popular".
As primeiras tendências bregas vieram então dotadas do capital estrangeiro do hit-parade norte-americano. Vieram os diluidores de boleros, guarânias, mariachis, country music, a partir de Waldick Soriano e similares. Depois veio a diluição da Jovem Guarda, que já parecia uma tradução menos sofisticada e datada do rock dos anos 60, numa época em que já haviam grupos mais audaciosos de rock como Doors, Byrds e The Who. Da diluição da Jovem Guarda (já ideologicamente longe da rebeldia original do rock ianque, próxima da jovialidade comportada de ídolos como Sandra Dee, Pat Boone e Bobby Darin), vieram nomes como Odair José, Diana e Paulo Sérgio, entre outros, com a adesão posterior de nomes da própria Jovem Guarda (os próprios Fevers seriam verdadeiros investidores da música brega e de sua conversão para o popularesco atual de Exaltasamba, Bruno & Marrone etc.).
Nos anos 70, depois do "milagre brasileiro" de Emílio Médici inaugurar uma etapa decisiva da música brega, com ídolos como Dom & Ravel e o "sambão-jóia" (diluição do samba moderno de Jorge Ben e dos Originais do Samba), a música brega buscou lançar novos ídolos jovens, como Gretchen, Sidney Magal (que chegou a ser crooner de MPB sob o nome de Sidney Magalhães), Peninha, Harmony Cats, Dudu França, Genghis Khan entre outros. Era a "modernização" do brega e de seu capital estrangeiro, desta vez envolvendo o pop romântico com elementos folk e a disco music. O Genghis Khan chegou a ser um clone do grupo de disco music Boney M.
Essa fase do brega dos anos 70, a exemplo do teste feito com os ídolos do "milagre brasileiro" de 1969-1973 (fase culminada com o tendencioso dueto entre o já ex-tropicalista Caetano Veloso e o ídolo brega Odair José na música deste, "Eu vou tirar você deste lugar", em 1973 no evento Phono 73), já adotava uma outra estratégia: a de criar uma imagem "urbana" da cafonice.
Sabe-se que as primeiras aparições da então denominada música cafona, originária dos anos 60 mas ainda em evidência nos anos 70, eram associadas à idéia de interior, de subúrbio. No entanto, a prevalência dessa visão poderia comprometer a própria música brega, produto da política de controle social que une grandes fazendeiros, políticos conservadores, empresários regionais de entretenimento (casas noturnas, bares, boates e até prostíbulos), políticos de direita e empresários dos meios de comunicação (dos alto-falantes às afiliadas de redes de rádio e TV). Isso porque a imagem interiorana da música brega - mesmo os retardatários seguidores da Jovem Guarda, que apareceram após o fim do movimento em 1968, mesmo com uma aparência "urbana" e o uso de guitarras elétricas tinham ainda um apelo fortemente interiorano. Os ídolos jovens setentistas, mesmo a "caipira repaginada" Gretchen (pseudônimo de Maria Odete de Miranda), eram a expressão de uma "modernidade" da música cafona que representava o período do governo Geisel, uma ditadura moderada mas que não se tornava, escancaradamente, uma democracia.
O estereótipo básico da cultura brega é o retrato típico da apropriação cultural e ideológica do povo pelas elites. Até o personagem fictício Jeca Tatu, que Monteiro Lobato criou em 1918, era menos estereotipado. E mesmo a Carmen Miranda sob as pressões de Hollywood não chegaria também a tanto. O problema é que os estereótipos do povo brasileiro pela música brega são feitos em carne e osso e seus mitos concebidos por brasileiros, ainda que por trás de tudo isso haja interesses de proprietários de empresas estrangeiras instaladas no Brasil.
É só comparar o Jeca Tatu, a Carmen Miranda e os bregas brasileiros. O Jeca Tatu era o caipira ingênuo, caricato mas um pouco mais próximo da realidade rural brasileira. Carmen Miranda era uma cantora com talento e carisma próprios, de personalidade forte e decidida, mas que foi obrigada, por razões contratuais, a fazer filmes medíocres e gravar ritmos confusos que misturavam rumba, mariachi e samba, e reconhecia o incômodo disso.
O brega, no entanto, é muito mais estereotipado, mas é um estereótipo tão mais cruel por ser quase imperceptível. Isso porque seus personagens, sendo de carne e osso, parecem muito mais "autênticos". Trata-se da imagem do sujeito ingênuo, ao mesmo tempo infeliz e resignado, ou da mulher ao mesmo tempo burra e "insubordinada", em ambos os casos havendo o aspecto grosseiro, rude, ingênuo, sem uma identidade cultural própria, de baixa auto-estima, em cuja vida só resta assistir à televisão, comer comida gordurosa e aderir à futilidade de seu estilo de vida extremamente vulgar e grotesco.
Os estereótipos, no entanto, são pouco percebidos pelas pessoas que hoje vislumbram a música brega. Mesmo a construção de um cenário sócio, econômico e cultural propício à cafonice, onde o povo pobre é entregue ao consumo tecnológico de aparelhos eletrônicos e onde o "circo" é armado com camelôs nas ruas, lanchonetes rudimentares de comida rápida feita com óleo vegetal de semanas atrás, ambulantes vendendo produtos piratas, tudo parece "saudavelmente popular". Qualquer questionamento sociológico é desestimulado. Sociologia, somente descritiva, numa narrativa confortável às demandas menos esclarecidas: o povo pobre passou a consumir produtos "modernos" (ainda que seja um televisor fora de linha), a comer comida rápida, a usar camisetas com palavras em inglês, a ter "suas" boates e "suas" butiques.
Mas isso esconde uma realidade cruel, a de que esse estereótipo "pop" do povo pobre não é mais do que uma visão paternalista de direita, de uma utopia que hoje parece muito atraente e sedutora para os olhos da "generosa" classe média, não a classe média dos CPC's da UNE dos anos 60 que, ainda que paternalista, queria colocar a música popular do Brasil nos eixos, mas a classe média deslumbrada com a cafonice, com a domesticação do povo pobre que representa a cultura brega, sem desconfiar de tantos sorrisos que latifundiários, políticos conservadores e empresários do entretenimento dão às costas tanto do povo quanto dessa "intelectualidade" deslumbrada.
Com o tempo, a música brega teve que somar ao seu "caldeirão" (não seria gororoba?) um pretenso "resgate" dos ritmos populares, mas na forma de um arremedo. Voltando a Sharon Zukin e Lia Motta, essa nova etapa, a partir da globalização neoliberal iniciada em 1990, estabelece um paralelo com o fachadismo enobrecedor dos centros históricos reformados, convertidos numa paisagem mercadológica, para consumo do público, e a "moderna música brasileira" de nomes como Zezé Di Camargo & Luciano, Chiclete Com Banana, É O Tchan, Banda Calypso, Exaltasamba, Alexandre Pires, Bruno & Marrone etc.. Eles representam a música brega convertida em "regionalismo" para investidor inglês ver, numa estereotipação da música brasileira mais cruel do que aquela feita com Carmen Miranda, porque é feita no Brasil e, aparentemente, por gente brasileira. Essa música brega também já estabelecia continuidade com a estereotipação de ritmos populares orquestrada por Wando, Chitãozinho & Xororó, Sullivan & Massadas e outros, nos anos 80.
O discurso pop dos cientistas sociais faz complicar as coisas. Tornou-se uma tendência, nos últimos anos, creditar a música brega e seus derivados ao longo do tempo como a "nova, verdadeira e definitiva música popular brasileira", em artigos ora inflamados, ora dóceis. Porém, esse discurso pop, na prática, não é mais do que um outro meio dócil de propagação do discurso neoliberal. O discurso desnacionalizante da economia neoliberal vêm, na retórica pop, com o frescor e a doçura de um sorvete. O modelo neoliberal de modernização dos portos brasileiros soa assustador para muitos, mas a diluição do samba e da música caipira pelo hit-parade estrangeiro, sobretudo Bee Gees, soa "positivo" para essas mesmas pessoas. "Pop" virou a ideologia do espetáculo, do modismo, da festa visual e gestual, da moda, da coreografia, do entretenimento. A retórica pop é a retórica neoliberal temperada com açúcar.
A atual fase do brega-popularesco, mesmo forjando a diversidade cultural brasileira, também não escapa aos estereótipos. Ritmos como a axé-music, o forró-brega, o brega-pop, o breganejo, o pagode pornográfico e o pagode romântico apenas reproduzem alguns elementos regionais mais manjados, sobretudo de baião, moda de viola e samba, mas saem carregados de influência estrangeira forte, da mesma forma que a música brega tradicional. Só o "funk carioca" seria, no som, explicitamente estrangeirista, mas ideologicamente tenta se promover com a pretensa imagem de "folclore fluminense", com uma "pequena" ajuda de uma grande rede de televisão. Além disso, é a própria tradução musical do projeto fachadista dos centros históricos convertidos em paisagem de consumo. O projeto fachadista aproveita apenas os elementos históricos mais consagrados, aproveitados numa reconstrução paisagística que ignora os objetivos sociais e transforma antigas habitações e prédios históricos em lugares de comércio e entretenimento.
O projeto do brega-popularesco aproveita clichês da diversidade musical brasileira e os coloca numa concepção "artística" meramente comercial, entreguista, que assimila os elementos estrangeiros não na forma da "antropofagia" anunciada pelo modernista Oswald de Andrade, mas na forma submissa do entreguismo cultural, que na forma brasileira só se traduz em uma expressão caricata dos dois lados, o estrangeiro e o nacional. A verdadeira cultura nacional aproveita os elementos estrangeiros para somar à sua arte, e transformá-la em conhecimento e atividade de valor social. A "arte" comercial, apenas absorve elementos estrangeiros como simples imitação, apenas para introduzir um modismo que certamente durará pouco tempo.
A "filosofia" fachadista, que nas cidades históricas as converte em paisagens de consumo sem qualquer vínculo com sua história social e que na música significa a produção de arremedos de cultura brasileira em tendências da música brega - que não conseguem esconder o estrangeirismo em seu som; mas aí eles se inspiram no "já brasileiríssimo" brega dos anos 70, recheado de Bee Gees até a medula - também investe na estereotipação social.
Vejamos as favelas, residências problemáticas, retrato dos efeitos das desigualdades sociais para o lado dos pobres. Convertidas em "pontos turísticos" pelas autoridades turísticas e pelo discurso da grande mídia, elas também se tornam paisagens de consumo. Não se está aqui condenando as ações sociais que se fazem nas favelas, porque elas são diferentes da exploração turístico-midiática. Estas, sim, têm o propósito de glamurizar a pobreza, promovendo o comodismo popular através da imagem exótica que é produzida por essas elites em relação às favelas. E a própria prostituição, um sub-emprego de mulheres na maioria pobres e de baixa escolaridade, também é "legitimada" como "força social permanente", sendo visto não como um emprego provisório, mas como uma profissão definitiva, como se as prostitutas não quisessem sair de suas vidas.
Esses dois artifícios citados no parágrafo anterior, expressões da ideologia "politicamente correta" adaptada à realidade brasileira, vão em concordância com a cafonice predominante na cultura de massa do Brasil. Transformam a pobreza, a miséria e a desgradação social em algo exótico, e depois promovem seus estereótipos no espetáculo do brega-popularesco, com suas micaretas, vaquejadas, bailes funk e os programas de auditório da TV aberta. Os intelectuais que defendem toda a linhagem da música brega juram que não existe decadência cultural, imaginando que todo o retrocesso melódico e artístico evidentemente expresso nesse tipo de música fosse uma "evolução natural" da Música Popular Brasileira. Com segurança, o que não decai, dessa indigesta gororoba musical brasileira, é a fortuna dos empresários, fazendeiros e políticos que patrocinam seus ídolos, que por sua vez vivem seu brilho artificialmente produzido pela mídia, compensando com muita publicidade a música de gosto bastante duvidoso que interpretam.
Mas, para o cientista social que olha o lindo sol se pondo no horizonte do mar, dentro de seu confortável apartamento do Leblon, todos os bregas-popularescos lhe parecem autênticos. Vendo à distância, o intelectual burguês enxerga na cafonice predominante uma "homogênea heterogeneidade" onde "tudo é tudo" e "qualquer coisa vale". Na economia globalizada, o deslumbramento dos turistas aos estereótipos brasileiros agora se expressa nos cientistas sociais locais. E a própria indústria dos estereótipos da música brasileira agora não tem mais escritórios em Nova York, mas em São Paulo. É a mão inversa da globalização, regionalizando os estereótipos, para vender o Brasil S/A para os olhos dos investidores das paisagens e mitos de consumo.
FONTE: Tempo Presente.Org.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CASTRO, Ruy. Carmen: Uma Biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
MOTTA, Lia. A apropriação do patrimônio urbano: do estético estilístico nacional ao consumo visual global. In: ARANTES, Antônio A. O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.
TINHORÃO, José Ramos. Música popular: um tema em debate. 3.ed. São Paulo: Editora 34, 1997.
ZUKIN, Sharon. Paisagens urbanas pós-modernas: mapeando cultura e poder. In: ARANTES, Antônio A. O espaço da diferença. Campinas: Papirus, 2000.
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