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O BRASIL ESTÁ MUITO DISTANTE DE JEAN BAUDRILLARD



Por Alexandre Figueiredo

A intelectualidade do Século XX segue perdendo seus personagens. Em 06 de março de 2006, foi a vez de Jean Baudrillard falecer, de câncer, aos 77 anos. Baudrillard era sociólogo, mas também desempenhava atividades de poeta e de fotógrafo. Era um dos mais importantes intelectuais em evidência nos últimos anos.

Nascido na cidade de Reims, na França, em 20 de junho de 1929, Baudrillard viveu sua infância num período de grande crise na Europa, época dos regimes fascistas, da Segunda Guerra Mundial e da invasão da França pelas tropas nazistas. Em Paris, estudou alemão na Universidade da Sorbonne, tornando-se professor da disciplina em um liceu parisiense. Trabalhou como tradutor para o francês de livros em alemão (sobretudo Karl Marx e Bertold Brecht) e crítico e prosseguiu seus estudos de filosofia e sociologia. A partir de então formulou sua formação intelectual através das obras de Karl Marx, Sigmund Freud, Friedrich Nietszche, Theodor Adorno, Claude Levi-Strauss, entre outros. Sob a orientação de Henri Lefebvre, Baudrillard desenvolveu sua tese de PhD, que deu origem ao livro O sistema dos objetos. A tese foi publicada originalmente em 1966 e transformada em livro dois anos depois. Foi a estréia bibliográfica do autor, que mais tarde deixou a influência marxista para se tornar ideologicamente independente.

Depois de acumular graduações e de se habilitar para o ofício de professor, Baudrillard se destaca como intelectual sobretudo nos anos 80 e 90, quando transformações de ordem política e tecnológica, com reflexos nas esferas econômica, social e cultural na humanidade, lançam novos problemas acerca do mundo em que vivemos. Ao longo de sua vida, publica 40 obras e, paralelamente à atividade intelectual, incluindo colaborações como colunista em jornais, publica poemas e registra fotos. Sua maior preocupação se relaciona com o aumento do poder dos meios de comunicação através dos recentes avanços tecnológicos.

Segundo Baudrillard, as redes de comunicação produzem uma grande quantidade de informações, ultrapassando os limites da finalidade e do fim. Já não há mais finalidade nem fim, e as noções entre o bem e o mal e o autêntico e o falso deixam de se tornar claras. A hiper-realidade, idéia defendida pelo autor, é definida pela transformação da realidade, por meio do poder tecnocrático da mídia, numa realidade virtual. A percepção da distância e do juízo de valor entram em distúrbio. A máquina representa o homem, que se reduz a um elemento virtual do sistema comunicativo.

Baudrillard causou polêmica ao dizer que a Guerra do Golfo, entre os EUA e o Iraque, ocorrida em 1991, na verdade não existiu. É um de seus principais exemplos da hiper-realidade, onde a "realidade" expulsou a realidade dos fatos, onde a guerra não era mais do que um espetáculo, quase um video game, diante de seu jogo de luzes. Não era como nas guerras mundiais ou em conflitos como o Vietnã, onde se via uma realidade "de carne e osso", não um espetáculo articulado pela mídia.

Quanto ao atentado ao World Trade Center, em 11 de setembro de 2001, o autor francês enfatizou a idéia de que o terrorismo obedecia a uma "lógica". De certa forma, podemos inferir, com base nessa idéia, de que os três atos terroristas ocorridos na Pensilvânia, no Pentágono e em Nova York eram um desafio à hegemonia tecnocrática dos EUA, cuja modernidade tecnológica não se preveniu contra uma ação aparentemente modesta mas cruelmente eficaz do grupo Al-Qaeda. Segundo o autor, em entrevista ao jornalista Luiz Antônio Giron, da revista Época:

"Os terroristas que destruíram as torres gêmeas introduziram uma forma alternativa de violência que se dissemina em alta velocidade. A nova modalidade está gerando uma visão de realidade que o homem desconhecia. O terrorismo funda o admirável mundo novo. Bom ou mau, é o que há de novo em filosofia. O terrorismo está alterando a realidade e a visão de mundo. Para lidar com um fato de tamanha envergadura, precisamos assimilar suas lições por meio do pensamento".

As idéias de Jean Baudrillard influenciaram os irmãos cineastas Wachowski para realizar a trilogia de ficção científica Matrix.

O ESPETÁCULO DO BRASIL MIDIÁTICO

Embora, nas palavras de Baudrillard, o Brasil lhe pareça ter "uma disposição intelectual mais generosa", o país sul-americano, na verdade, está muito aquém de participar da modernidade intelectual do Primeiro Mundo. Está muito distante da contemporaneidade crítica que marcou a obra de intelectuais como Baudrillard. País em processo de desenvolvimento econômico em andamento, e por isso integrante das futuras potências mundiais ao lado da Rússia, Índia e China, o Brasil no entanto tem um cenário cultural muito atrasado e equivocado.

País jovem, com apenas pouco mais de meio-milênio de vida, o Brasil tem um perfil de mídia e cultura incipientes, cujas contradições e equívocos, cujos similares já foram fartamente questionados pelo cinema, pela música e pela imprensa dos EUA e Europa, ainda não são devidamente questionadas.

O Brasil é ainda um terreno fértil para fenômenos como o "jabaculê" - que nos EUA virou caso policial e custou a reputação do DJ Alan Freed no "Escândalo da Payola" (payola é o equivalente ianque ao nosso "jabaculê") - , os reality shows, o fanatismo doo star system, o monopólio do hit-parade, blockbusters, best sellers e agenda setting, que são os respectivos referenciais de "sucesso" para a música, o cinema, a literatura e o noticiário. O comercialismo na cultura ainda é visto por sua arrogante platéia brasileira como uma "verdade absoluta" para a qual não se deve questionar. O pensamento é tratado de forma irresponsável, enquanto o fetiche se materializa e se torna, aos olhos de seus admiradores, mais real do que a realidade.

Tendo o Brasil passado por uma ditadura militar - cujos efeitos ainda não foram devidamente resolvidos - , a realidade brasileira é marcada por uma ojeriza de grupos sociais influentes à prática de senso crítico. Consultando a Internet, é comum haver comentários agressivos, jocosos ou apenas contrariados de gente que vê seus ídolos da TV e rádio e seus referenciais de mídia mais comercial serem contestados em textos publicados na rede. Algo que não se imaginava com tal força em outros tempos do establishment do entretenimento.

Mesmo numa democracia plena como o Brasil, há pessoas que vêem na prática de senso crítico um ato "anti-social", "pessimista" ou "extremamente arriscado". Parece que o trauma de 1961-1964, quando o alto índice de manifestações sociais provocou, na direita, a reação que resultou na ditadura militar, ainda repousa nas famílias brasileiras. Por outro lado, a ilusão neoliberal do pragmatismo, do positivismo e do utilitarismo buscam um forçado e forjado equilíbrio social que mais esconde as desigualdades sociais do que promove esse equilíbrio. É mais uma forma de defender o conformismo social ante as gradativas distorções, sob todos os aspectos, que o Brasil vive há muitos anos.

Por isso mesmo, a mídia e a tecnocracia acabam exercendo um poder maior no Brasil, propiciado pela forte influência das empresas multi-nacioniais - agora chamadas também "transnacionais" - , para as quais a pretensa "paz social" deve ser manifesta pelo simulacro de estratificação social, no sentido de atribuir a "sabedoria" e o "julgamento dos fatos" a poucos. O privilégio da consciência crítica se reserva à imprensa ou ao livre debate de pequenos grupos, lembrando o "feudalismo tecnológico" citado por Baudrillard.

Esses pequenos grupos se expressam em sites de poucos visitantes ou em comunidades de poucos membros em sites de relacionamentos, ou em publicações de poucas demandas. O senso crítico pleno circula apenas por esses guetos, mas, quando alguém tenta furar o cerco, sanções das mais diversas acontecem, desde o veto de editores de veículos mais influentes a textos mais "arriscados" ao status quo vigente, até e-mails com vírus de macro que os fãs de dado fenômeno de mídia enviam para o internauta que lançou textos críticos num espaço mais influente da Internet.

É o que os meios acadêmicos chamam de Idade Mídia. Um trocadilho oportuno com a Idade Média, a "idade das trevas". A Idade Mídia teria apenas uma variação dessa idéia, a de "revelação e ocultação", de um controle da opinião pública através de procedimentos como a "sacerdotização" da grande imprensa - que, sob o pretexto de "façanhas" como a cobertura pelas Diretas Já, em 1984, e o escândalo Collor-PC, em 1992, vende a imagem de "salvadora da pátria" - , elevando os jornalistas mais influentes ao posto de "possuidores do saber".

Há também o culto ao espetáculo, sobretudo à obsessão pelas noitadas (que traz gírias de credibilidade duvidosa como "balada"), ao entretenimento sem conteúdo, à "curtição" como um fim em si mesmo. Em muitos casos, o prazer é algo que não se acha. Como naquilo que a mídia chama de "balada" - ou seja, noitadas onde geralmente se toca música eletrônica e um DJ é quase que um anfitrião do evento - , onde seus freqüentadores muitas vezes dançam a um som monótono, sendo mais objetos desse evento do que realmente sujeitos. As propagandas de cerveja vão muito nesse estilo de vida alienado, onde a única atividade "cultural", além das noitadas e dos chats da Internet, entre outros brinquedos tecnológicos (como telefones celulares usados mais para exibir sons, os ringtones, ou as fotos digitais da "galera"), são os desfiles de moda e as atividades esportivas.

O "espetáculo acima de tudo" permite até que, mesmo entre os jovens de nível universitário, seus referenciais sofressem uma queda de qualidade, aceitando tudo que é de gosto duvidoso desde que seja "divertido". A isso se propaga uma ideologia do "sucesso", onde as celebridades se tornam bem-sucedidas sem muito motivo, mas mesmo assim se tornam indiscutíveis. "Eles conquistaram o seu espaço", é o argumento mais utilizado pelos seus defensores. O grande problema é se esse espaço realmente pertence a esses ídolos, que sentido tem esse "espaço" e se outra pessoa mais capacitada não mereceria mais este espaço.

Nesse contexto todo, onde o que era "rasteiro" e "retaguarda" na cultura e entretenimento, se torna "vanguarda" apenas por um esforço oportunista das emissoras de TV e revista de celebridades, ou por um capricho de pretensos saudosistas de plantão. Até o público underground ganhou uma versão estereotipada ao gosto da grande mídia: os "descolados", pretensos conhecedores de cultura que apenas estão dois palmos à frente dos modistas.

Enquanto isso, a própria realidade acadêmica não é propícia para intelectuais de forte senso crítico. Quando muito, Arnaldo Jabor critica o comercialismo do cinema - ele criticava a "pagodização" da cultura brasileira, mas, para o bem do popularesco que interessa à grande mídia, ele parou - , ou nomes como Muniz Sodré, Renato Ortiz e Adauto Novaes lançam livros sobre a "Idade Mídia" para poucos lerem. E, mesmo assim, eles ainda não têm a munição crítica que teve Baudrillard, ou que possuem Noam Chomsky e Umberto Eco, embora Muniz Sodré chegue perto. Não por incompetência, mas pela metodologia deles.

O problema não está nesses autores brasileiros, que adotam, por opção pessoal, uma metodologia mais científica que crítica, mas no monopólio dessa metodologia nos meios acadêmicos. Se fosse brasileiro, certamente Jean Baudrillard não teria chegado sequer ao mestrado. Seu discurso teria que ser podado ao extremo, seus trabalhos acadêmicos teriam que ser dotados de muita retórica "semioticizante", onde um tema tem que ser dissecado conforme os clichês da análise de discurso.

Nas obras da intelectualidade influente do país, parágrafos são desperdiçados com uma retórica de termos rebuscados e abordagem prolixa, onde expressões como "sociedade globalitária" e "paradigmas da pós-modernidade" - só para citar as mais compreensíveis - são usadas abusivamente, mais para enfeitar o texto com palavras de efeito do que para explicar a problemática supostamente abordada. Mais de trinta linhas são gastas só para definir o problema como "significante", identificar seu "significado" e seus "símbolos", "signos" e "índices". Trabalhos são também desperdiçados pelo excessivo desfile de citações de outros autores, para preencher o vácuo analítico do autor sem prejudicar o cumprimento da quantidade de páginas do trabalho em questão. Pior: quando aparece algum problema, como o fenômeno do apresentador Carlos "Ratinho" Massa, ele é estudado não como um problema crônico da televisão brasileira, mas como um fenômeno "pitoresco" que está a serviço da vaidade de professores e pesquisadores influentes.

Certamente Jean Baudrillard teria morrido, se fosse brasileiro, não como um grande intelectual internado com grave enfermidade, mas como um anônimo nos quartos do INSS. O meio acadêmico brasileiro, dependente de verbas federais e subsídios privados, medem a linha de análise e pesquisa conforme as exigências do mercado, procurando minimizar os riscos.

Dessa forma, o Brasil melindroso, que força manter um equilíbrio social que não existe e que não é mais do que um pretexto para o conformismo social que esconde os problemas, paga o preço caro de não reagir a coisa alguma, com o crescimento da violência, da miséria e da mediocrização cultural que ainda é defendida pela grande mídia. Com este cenário, o Brasil conformista deveria se conformar com sua condição de país sub-desenvolvido e assistir ao crescimento da China que, mesmo sendo uma ditadura, investe, ainda que parcialmente, em alguns programas de desenvolvimento social.

FONTES: Revista Textos (UFBA, 1992), Wikipedia (Português e Inglês), Consciência.Net, UOL Notícias.

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