Por Alexandre Figueiredo
A revista Domingo, suplemento do Jornal do Brasil do dia 14 de maio de 2006, publicou uma reportagem sob a lenda da descoberta de tesouros sob as cisternas do Morro do Castelo, no Centro do Rio de Janeiro. É uma lenda que atravessa séculos e já fez parte dos relatos escritos de diversos escritores e cronistas. Lima Barreto já fez uma reportagem a respeito e escreveu um romance nela inspirado. Machado de Assis já escreveu uma crônica a respeito do tema, em 1893, cujo trecho foi transcrito pelo pesquisador do curioso assunto, o Doutor em História pela UFRJ, Carlos Kessel. Escreve nosso ilustre Joaquim Maria, do Cosme Velho:
As grandes riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da meninice e da mocidade... Perdi saúde, ilusões, amigos e até dinheiro; mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi. Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não tinham tempo nem meios de levar as riquezas consigo; depressa, ao subterrâneo, venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras, corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos, quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de brilhantes, dentes de pérolas; toca a esconder, a guardar, a fechar... (ASSIS, Machado de. Conversa com São Pedro, Rio de Janeiro, 12 de fevereiro de 1893.
A pesquisa de Kessel foi publicada em 1997, e Domingo resgatou essa lembrança, de uma lenda que até hoje intriga muitas pessoas, e que acabou fazendo parte do folclore do Rio Antigo, ou melhor, de um Rio bem mais antigo do que a idéia oficial de "Rio Antigo" que passa na mente de muitos, de um Rio urbano da fase Pereira Passos, no início do Século XIX.
Essa crença provavelmente remete ao final do século XVIII. A essas alturas, o município do Rio de Janeiro já contava com pouco mais de dois séculos de existência. A cidade, cujo berço a História registra como o Morro Cara de Cão, hoje conhecido mundialmente como Pão de Açúcar, havia sofrido a invasão de franceses liderados por Nicolau Villegaignon, a serviço da monarquia de seu país, que queria instituir, no Brasil, a França Antártica. A resistência das tropas do governador-geral Mem de Sá, com o apoio dos indígenas catequizados pelos padres da Companhia de Jesus, conseguiu derrotar os franceses. Mas os combates, difíceis, fizeram com que a sede do governo de Mem se mudasse para o Morro do Desterro (depois Morro do Castelo), depois que seu sobrinho Estácio foi morto no combate, repetindo a tragédia que antes havia ocorrido com o filho do governador, Fernão, no Espírito Santo.
No Morro do Castelo, que também era conhecido como Morro de São Januário, funcionou a Igreja e o Colégio da Companhia de Jesus, sede da instituição. Foi o centro espiritual e administrativo da Companhia, onde eram depositadas riquezas que eram contabilizadas e enviadas para os navios ancorados no Porto dos Padres da Companhia de Jesus, na área da zona portuária onde hoje inclui a Estação das Barcas. As riquezas eram colocadas em arcas e as embarcações as enviavam para as cidades européias de Lisboa, Madri e Roma. É neste porto, também, que chegavam as mudas de plantas, os livros e os instrumentos rudimentares utilizados pelos padres, que através deles se tornaram pioneiros, no Rio de Janeiro, no desenvolvimento de atividades agrícolas, medicinais e educacionais. O porto também serviu para os padres se refugiarem, no ano de 1640, quando os cariocas se revoltaram com a determinação do Vaticano de excomungar aqueles que fizessem os indígenas seus escravos. Os padres temiam ser vítimas da vingança dos populares.
Nesse morro, também eram situadas as casas dos primeiros colonizadores do Rio. Suas principais edificações na época eram a Igreja e a Fortaleza de São Sebastião, esta protegendo o Castelo do mesmo nome. Daí a denominação do Morro, que foi o núcleo inicial do povoamento da cidade, que depois se expandiu para outras áreas.
Entre o final do século XVII e o começo do seguinte, a área do Morro do Castelo viveu um período de abandono, com muitos de seus terrenos desabitados sendo ocupados, em seus quintais, por mato. Neste cenário, teve uma breve trajetória o corsário francês, foragido de seu país, de nome Duclerc, que no Morro do Castelo só encontrou, ainda existentes, a Igreja e o Colégio da Companhia de Jesus. Neste colégio, Duclerc foi detido e preso por estudantes liderados por Bento do Amaral Peixoto. Transferido para uma casa na Rua da Quitanda, Duclerc foi misteriosamente assassinado, e no local onde seu corpo foi encontrado foi descoberto também o acesso a um dos vários túneis que ligavam os porões jesuíticos sob os altares e celas a diversos pontos da cidade.
A morte de Duclerc permaneceu em mistério, dando margem a várias lendas a respeito do episódio. Por outro lado, o hábito dos jesuítas em armazenar grandes quantidades de ouro foi um fato confirmado. Um outro corsário francês, Duguay-Trouin, num de seus assaltos ao Colégio dos Jesuítas, alojou seu bando nos referidos aposentos. Um de seus subordinados escreveu, num relato sobre o acontecimento, que o bando foi informado da existência de um navio pertencente aos jesuítas que saiu do porto carioca carregado de toneladas de ouro.
O episódio marcou o início da decadência dos jesuítas, que depois deixariam suas atividades missionárias no Brasil sob ordens do Marquês de Pombal. Para evitar que o bando de Duguay provocasse sérios estragos no Rio de Janeiro, os jesuítas tiveram que entregar-lhe grandes somas de dinheiro, açúcar e até bois. Além disso, os jesuítas preocupavam o poder português (assim como o espanhol, interessado também em explorar o imenso país) quanto à influência da Companhia de Jesus na catequização indígena, que poderia comprometer os interesses de exploração de riqueza da Metrópole.
A expulsão das missões jesuíticas do país se deu sob o pretexto dos elevados custos para a reconstrução de Lisboa, destruída pelo terremoto de 1755, que deixou cerca de 40.000 mortos. O pretexto foi dado pelo primeiro-ministro português, Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, que realizou um governo despótico no país europeu e na sua colônia sul-americana.
Um documento atribuído a 05 de dezembro de 1758 teria originado a lenda da existência dos tesouros escondidos sob o Morro do Castelo. Segundo o documento, reproduzido por Vieira Fazenda na edição de maio de 1905 da revista Renascença, o depósito seria uma forma dos jesuítas se prevenirem contra qualquer infortúnio. Entre os tesouros citados no referido documento, estão: três mil arrobas de ouro em pó, moedas de ouro de diversas espécies e uma imagem de Santo Inácio de Loyola com 220 arrobas de ouro. A autenticidade do documento, não-avaliada com precisão por Fazenda - que inseriu pontos de interrogação em várias passagens do documento e não conseguiu reconhecer o nome do visitante que assina esta ata - , ainda requer pesquisa mais detalhada de um futuro estudioso que interessar. A ata e o mapa correspondente foram entregues ao engenheiro Paulo de Frontin (mais tarde prefeito, depois da gestão transformadora de Pereira Passos) por um almirante chamado João Nepomuceno Batista.
O mistério quanto aos tesouros é reforçado quando o Vice-Rei Gomes Freire de Andrade, o Conde de Bobadela, liderou uma operação para capturar os padres jesuítas e seqüestrar os seus bens. Além de terem encontrado vários papéis rasgados - talvez documentos apressadamente destruídos, ou restos de documentos antigos já antes rasgados - , encontraram apenas quinhentos mil duzentos e vinte réis, quantia que, segundo Gomes Freire, era diminuta em relação à proporção dos rendimentos do Colégio e da Igreja. Os homens a serviço do Conde de Bobadela passam dias procurando por outros tesouros, mas não os encontram. Segundo relatos registrados da época, os jesuítas haviam de salvar todos os bens que pudessem. Acrescenta Kessel: "e no caso dos bens imóveis, como as terras e as casas, haviam recorrido a estratagemas contábeis para desviar para particulares, através de arrendamentos e doações, o que esperavam recuperar mais tarde" (Kessel, 1997). Depois que todas as igrejas e colégios jesuítas foram invadidos, cercados e ocupados, e capturados os padres, em 14 de março de 1760 eles são transportados pelo navio Nossa Senhora do Livramento e São José, que embarca para Portugal na madrugada seguinte. Pela Europa, outras missões jesuítas também eram desfeitas. O Colégio dos Jesuítas foi depois transformado em residência dos vice-reis.
Nos séculos XIX e início do seguinte, a região do Morro do Castelo entra em processo de decadência. A área destacada pela presença de padres jesuítas se tornou uma região de gente pobre, enquanto o centro carioca crescia pela área correspondente à Avenida Central, logradouro aberto no início do século XX e anos depois rebatizado com o nome atual de Rio Branco. A construção da Avenida ocorreu à mercê da destruição de várias casas e boa parte de seus antigos moradores migrou para o Castelo, povoando quase todas as residências localizadas no morro, a maior das quais denominada Chácara da Floresta, situada na Ladeira do Seminário. Não era distante da Av. Central, mas seu contraste era grande: era terreno acidentado, quase uma roça, onde um matagal servia de pasto para as cabras que viviam no lugar.
Naqueles primeiros anos do Século XX, com o Brasil na sua primeira fase republicana, marcada pelo provincianismo dos Estados e pela alternância de poder, no âmbito nacional, entre mineiros e paulistas, o Rio de Janeiro que se esforçava para ser uma Paris dos trópicos vivia a polêmica da exploração de tesouros do Morro do Castelo e também da demolição dos cortiços e casas existentes no local. As autoridades e a opinião pública mais influente na época reclamava da péssima higiene do local, e pedia a demolição do local e a remoção dos moradores. Havia também o pretexto da exploração dos tesouros escondidos nas galerias, e se discutia a iniciativa de expedição das mesmas. O engenheiro Henrique Verme chegou a pedir uma concessão para demolir o lugar, em 1910.
No ano seguinte, Pires do Rio, realizou uma reportagem para a revista Ilustração Brasileira a respeito das galerias. Antes, dois escritores fizeram citação do caso. Machado de Assis havia feito uma menção ao morro, num de seus derradeiros livros, Esaú e Jacó, publicado em 1904. Por sua vez, Lima Barreto, segundo o biógrafo Francisco de Assis Barbosa, realizou uma série de vinte e duas reportagens sobre as escavações em torno das galerias, para o Correio da Manhã, em abril de 1905. Barreto afirmou não ter encontrado os referidos tesouros.
Sem trazer uma resposta definitiva para o caso, Pires afirma que encontrou nas cinco galerias existentes várias ossadas humanas, instrumentos de escavação e utensílios de barro obsoletos, além de vestígios de que outras pessoas haviam visitado o local. No seu texto, ele cita casos de supostos esconderijos de tesouros jesuítas em Brás de Pina, Irajá e na Ilha do Vianna para concluir que eles não existiam.
Naquele tempo, os governantes que sucederam a Pereira Passos pouco deram caso ao Morro do Castelo. O lugar parecia condenado ao esquecimento. Qualquer discussão a respeito do lugar era desestimulada e pouco surtia efeitos. As autoridades estavam mais preocupadas com o saneamento e embelezamento da cidade, e viam no morro uma espécie de "elefante branco" para o progresso carioca.
No ano de 1912, três projetos de destruição do Morro do Castelo foram apreciados pelo Congresso Nacional. O projeto escolhido pela maioria dos parlamentares foi o que preveu a destruição total do morro, cujo entulho seria reaproveitado para aterrar várias áreas litorâneas da cidade. Houve acaloradas discussões entre quem aprovava e rejeitava a demolição do morro. Para se ter uma idéia, Lima Barreto posicionou-se a favor. Já Monteiro Lobato, foi contra.
Durante toda a década de 20, o morro foi destruído aos poucos. Sua demolição iniciou-se às pressas, ainda em 1920. Os restos mortais de Estácio de Sá foram transferidos para a Igreja dos Capuchinhos na Tijuca., em 20 de janeiro de 1922. As dramáticas fotos da demolição e da remoção dos moradores - foram 4 mil - foram registradas pelos fotógrafos Augusto Malta e Guilherme Santos. O aterro foi feito aos poucos. A antiga praia de Santa Luzia foi uma das primeiras áreas aterradas e neste terreno foram realizadas as comemorações do Centenário da Independência, em 1922. Outra das primeiras áreas aterradas foi o prolongamento da Ponta do Calabouço, que também foi palco do Centenário e mais tarde neste terreno foi construído o Aeroporto Santos Dumont.
O entulho resultante da demolição do Morro do Castelo serviu para desenhar a orla marítima do Centro Sul carioca. Sobre os aterros, surgiram logradouros como a Avenida Beira-Mar, ligação do centro para a Zona Sul carioca. Na década de 1950, uma outra demolição, desta vez do Morro de Santo Antônio, foi realizada, e o entulho resultante também foi utilizado para aterrar a orla, constituindo os atuais aterros do Flamengo e de Botafogo. Durante o aterramento, o XXV Congresso Eucarístico, evento da igreja católica, foi realizado em 1955 no Aterro do Flamengo. O segundo aterramento da orla do Centro Sul carioca se completou em 1965.
Do Morro do Castelo, restou apenas uma pequena ladeira situada ao lado da Igreja de Nossa Senhora do Bonsucesso, no Largo da Misericórdia, interrompida por um barranco que foi transformado em estacionamento. Várias imagens e documentos do morro também restaram como legado. Todavia, o nome Castelo permaneceu, constituindo-se atualmente numa parte do centro da cidade localizada entre a Carioca e a Praça XV, ocupada em boa parte de sua área por prédios modernos. Quanto aos tesouros escondidos sob as galerias da Companhia de Jesus, ficaram os registros de relatos sobre uma existência que até agora não se provou, mas que rende animadas discussões até hoje.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CONHECER BRASIL. Brasil, Volume Dois. São Paulo: Abril Cultural, 1982.
GERSON, Brasil. História das Ruas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 2000.
KESSEL, Carlos. Os tesouros do Morro do Castelo: Ouro dos jesuítas no imaginário do Rio de Janeiro. In: Revista de História Regional, vol. 2, n. 2. Ponta Grossa: UEPG, 1997.
MAGALHÃES, Aline Montenegro. Colecionando relíquias... Um estudo sobre a Inspetoria de Monumentos Nacionais (1934 – 1937). Publicado na Internet em http://www.liphis.com/teses/pt/2004_mest_ufrj_aline_montenegro_magalhaes.pdf. Fonte consultada em maio de 2006. Rio de Janeiro, Pós-graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, 2004.
SÉ, Rafael Sento. Segredos do Castelo. In: DOMINGO. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 14 de maio de 2006.
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