Por Alexandre Figueiredo
A partir do fim dos anos 1980, o radialismo rock entrou numa fase de decadência. As rádios especializadas e dotadas de um perfil diferenciado passaram a sofrer a concorrência predatória de emissoras comerciais que, de rock, só tinham o rótulo e a presença de uns dois, três ou, no máximo, meia-dúzia de programas específicos.
Enquanto rádios seminais como Fluminense FM, de Niterói, 97 Rock, de Santo André, Estação Primeira, de Curitiba e Ipanema FM, de Porto Alegre, tiveram que diluir seu formato para sobreviver, restringindo a quantidade de músicas e artistas tocados e aderindo à "estética MTV", um sem-número de FMs de pop ou popularesco, em várias partes do país, se fantasiava de "rádios rock" sem uma adequação ao segmento, cometendo erros grosseiros e constrangedores com a presença de locutores pop, que descrevermos com mais detalhes a seguir.
Com um grande jogo de aparências, as “rádios rock” dos anos 1990 tinham uma estrutura empresarial mais organizada e próspera do que as rádios de rock pioneiras, mas seus radialistas da grande diária de programação, em que pesem a formação técnica em radialismo, não tinham especialidade em rock e seus estilos eram de locutores pop comuns, incompatíveis com o segmento.
Mas como se deu essa decadência velada, disfarçada pelo falso sucesso comercial das rádios 89 FM, de São Paulo, e Cidade, do Rio de Janeiro - esta última capitalizando em torno do fim da Fluminense FM, numa performance pior do que a dos últimos anos da rádio niteroiense - , motivado mais por uma robusta estrutura empresarial e um forte esquema de marketing do que de uma vocação natural pelo rock?
Vários fatores envolveram todo esse processo e que, depois do sucesso comercial, as duas rádios contribuíram para o desgaste da cultura rock, que hoje está num processo de reavaliação através dos debates e dos relatos biográficos do mundo do rock, a partir de portais como o Whiplash e inspirados por páginas estrangeiras como o Far Out.
PIONEIRA FLUMINENSE FM NÃO SE EXPANDIU
A decadência do radialismo rock se deu por conta do fenômeno do Rock In Rio na sua primeira edição, em janeiro de 1985, que foi um estrondoso sucesso, mas criou uma camisa de força mercadológica para a cultura rock, que se tornou submetida a interesses empresariais.
Conforme havia dito Luiz Antônio Mello, ex-gerente artístico da Fluminense FM no seu livro A Onda Maldita, a emissora de Niterói não pôde ser a patrocinadora do Rock In Rio, missão que foi delegada à rádio popularesca 98 FM, por ironia ocupando o espaço no dial da antiga rádio de rock Eldorado FM, a Eldo Pop.
Para complicar as coisas, o superintendente do Grupo Fluminense de Comunicação, Ephrem Amora, proibiu que a Fluminense FM produzisse um jornalzinho, Rock Press, para divulgar notícias relacionadas ao rock e que serviria também de divulgação de matérias ligadas ao Rock In Rio. Ou seja, a Fluminense queria se expandir como um referencial de rádio de rock, mas não tinha condições financeiras. Havia também a falta de recursos financeiros até para pagar telefonemas para correspondentes em Nova York.
Com isso, a Fluminense FM acabou decrescendo, apesar de uma boa e subestimada fase entre 1985 e 1987 tocando mais rock alternativo do que o projeto "antirrádio" da paulista 89 FM, rádio controlada por um poderoso grupo empresarial apoiador da ditadura militar, a família Camargo, que, sob muitas restrições de caráter comercial, divulgava o rock independente, preferencialmente músicas de trabalho tocadas no fim de noite e sob garantia expressa de lançamento no mercado brasileiro.
A título de comparação, a Fluminense, mesmo sem garantia de lançamento no Brasil, jogava na programação diária, na manhã e na tarde, nomes até hoje subestimados pela cultura rock, como as bandas XTC, Teardrop Explodes e Weather Prophets, além de bandas brasileiras de gravadoras independentes como Baratos Afins, Wob Bop e Devil Discos, cuja divulgação na 89 FM sofria mais restrições, quanto ao horário de veiculação quanto ao repertório.
DEMANDA EXCESSIVA DE LOCUTORES POP
Por outro lado, a ascensão da Rádio Cidade do Rio de Janeiro, originalmente uma emissora assumidamente pop surgida em 1977 - passado que a própria rádio, na onda das fake news de 2014-2020, tentou ocultar - , criou uma demanda excessiva de locutores pop que inflacionou o mercado e criou uma grande praga. Locutores sem personalidade, com voz afetada e linguagem de animadores de gincanas passaram a se multiplicar feito praga.
Com isso, a partir do fim dos anos 1980, esses locutores passaram a ser contratados por "rádios rock" a partir do próprio exemplo da 89 FM que, com o fim da fase "antirrádio" passou a assumir o estilo dos locutores conhecidos pejorativamente pelo rótulo de "alô gatinha", passando a contaminar, desde então, a grade diária da programação desse tipo de rádio.
A partir de 1989, e de maneira mais sistemática em 1990, o radialismo rock foi invadido por rádios canastronas cujos locutores faziam o estilo escancaradamente pop e, embora tenham que se concentrar nos textos informativos sobre rock, essas matérias eram lidas com a mesma falta de naturalidade de leitores de teleprompter, com até boa pronúncia de palavras em inglês, mas sem conhecimento de causa.
Muitas das "rádios rock" surgidas na virada dos anos 1980 para os 1990 eram rádios pop ou popularescas que pegavam carona na onda do grunge e que não se preocuparam em sequer contratar ou treinar uma equipe especializada. Locutores pop eram contratados sem se adequar à linguagem ou estilo. A única coisa feita é tão somente contratar uma pequena equipe de produtores ou redatores, pois até o repertório musical era previamente ditado pela indústria fonográfica, que já vinha com as "músicas de trabalho" pré-determinadas para serem tocadas.
A realidade irônica é que potenciais aspirantes a locutores de rock autênticos ficavam de fora no rádio, havendo até o caso frequente de roqueiros que ficavam tocando discos de vinil em oficinas de concertos de aparelhos eletrônicos. Em muitos casos, essas oficinas tocavam mais rock do que as "rádios rock", estas preocupadas com os "sucessos do momento", descritos sob o rótulo eufemístico de "clássicos".
E ficava sempre uma coisa estranha de ouvir locutores anunciando bandas como AC/DC, Iron Maiden, Metallica, Nirvana e Ramones como se fossem New Kids On The Block ou Technotronic. E isso com direito a locução atropelar as introduções e os finais das músicas, atrapalhando a audição na íntegra.
As "rádios rock" que vieram a partir dos anos 1990, das quais se sobressaíram a 89 FM, em São Paulo, e a "convertida" Rádio Cidade, no Rio de Janeiro - cuja mudança se deu em 1995, quando um grupo de jovens DJs da Zona Sul carioca se dividiu entre derrubar a Fluminense FM para dar entrada à Jovem Pan e introduzir uma fórmula pasteurizada de rádio de rock nas ondas da Cidade FM - , fizeram com que o radialismo rock se tornasse um relativo sucesso comercial, mas provocando o afastamento do público original de rock, que decidiu ficar ouvindo discos de vinil e CDs.
"JOVEM PAN COM GUITARRAS" OU SUBESCRITÓRIOS DE EMPRESAS DE EVENTOS
Embora hoje o rótulo de "Jovem Pan com guitarras" soasse datado, pois a Jovem Pan dos anos 2020 mais parece um pastiche de radiojornalismo, o termo se encaixou nos anos 1990 para definir os perfis que a dupla "rockneja" 89 FM e Cidade que tentavam se promover como "as maiores rádios de rock do Brasil".
Na verdade, as duas rádios reproduziam, na época, exatamente o mesmo perfil que a Jovem Pan, então um paradigma em ascensão do radialismo pop mais convencional, transmitia. Até o repertório base, pasmem, não oferecia grandes diferença.
Ou seja, tanto a Jovem Pan quanto a 89/Cidade tocavam o mesmo cardápio na programação diária: Skank, Cidade Negra, Mamonas Assassinas, Alanis Morissette e Lenny Kravitz. A grande diferença desse feijão-com-arroz pop estava nas guarnições. Se a Jovem Pan vinha com Britney Spears e Backstreet Boys, a dupla 89/Cidade vinha com Pearl Jam e Metallica.
No âmbito promocional, é notório que, no circuito de cinemas, a Jovem Pan e a 89/Cidade promovessem as mesmas produções. Na maioria das vezes, o filme estrangeiro que era patrocinado pela 89 FM no circuito paulista era patrocinado pela Jovem Pan Rio no circuito carioca.
Exemplo disso é o blockbuster que mistura animação e live action, a comédia Space Jam (com interação de astros do basquete estadunidense com personagens da série Looney Tunes, da Warner), patrocinado pela 89 FM em São Paulo e pela Jovem Pan Rio no Rio de Janeiro. No sentido inverso, a Rádio Cidade patrocinou no circuito carioca a adaptação do filme O Guarani dirigida por Norma Bengell e estrelada por Márcio Garcia, enquanto que em São Paulo o patrocínio ficou com a Jovem Pan.
Quanto aos eventos, enquanto a Jovem Pan ficava com eventos mais ecléticos, envolvendo cultura fitness - uma das âncoras da programação de pop dançante da emissora, que divulgava sobretudo a obscura cena europeia - , a 89/Cidade viravam escritórios promocionais das empresas promotoras de grandes festivais ou contratadoras de eventos ou shows de rock, patrocinando artistas do gênero que chegavam ao Brasil.
OUVINTES ARROGANTES
A decadência do radialismo rock também se deu pelo perfil dos ouvintes. O público original de rock se afastou do rádio e foi abastecer suas coleções de discos com títulos mais substanciais, aproveitando que, naqueles anos 1990, CDs e discos de vinil ainda custavam preços que, mesmo caros, eram relativamente acessíveis.
O radialismo rock, reduzindo a um subsegmento do radialismo pop, com praticamente as mesmas fórmulas de programação, locução e linguagem ditadas pela Jovem Pan, fez com que o público de rock ficasse ainda mais à margem, como na década de 1970. A ascensão das webradios de rock estrangeiras serviam de refúgio para um público que não se deixava enganar pelo rótulo "rádios rock" que só era conversa para boi dormir.
Os roqueiros mais condescendentes ainda sintonizavam as ondas da 89 FM em São Paulo no fim de noite, que era a faixa de horário em que havia programas específicos, comandados por jornalistas ou músicos mais especializados em rock. É claro que isso se tornou superestimado e os programas passaram a emprestar a "imagem geral" para as "rádios rock", como se essas emissoras transmitissem "24 horas de puro rock'n'roll", o que é uma incoerência.
Afinal, rádio de rock não é só o repertório roqueiro tocado. Se a rádio toca músicas de rock mas tem uma mentalidade de rádio pop, ela é apenas uma "rádio pop que só toca rock". Mas não tem o estado de espírito necessário nem a linguagem ou filosofia de trabalho necessárias para serem consideradas "especializadas em rock". Logo, não cola a propaganda enganosa de que essas rádios são "100% rock'n'roll". Falta a alma roqueira, pois de rock só tem a vitrola e o toca-CD.
Por outro lado, o triste fenômeno dos jovens arrogantes, pessoas temperamentais e violentas que viam nas "rádios rock" dos anos 1990 um veículo para suas catarses emocionais, se tornou típico e que, por ironia, foi um embrião para o que, mais tarde, se conheceu como a juventude bolsonarista.
Ouvintes "esquentadinhos" da 89 FM e, principalmente, da Rádio Cidade, temendo não serem levados a sério pelo público roqueiro em geral, caprichavam na fúria e na falta de respeito humano, xingando e agredindo quem não concordava com o que pensavam, acreditavam e faziam. Eu mesmo tive tretas com alguns deles e pude observar o caráter cultural superficial que tinham.
O gosto musical roqueiro dessa juventude temperamental não ia muito além de Guns N'Roses, Raimundos, System of a Down e Charlie Brown Jr.. Quando muito, bajulações a Pearl Jam, Nirvana e Iron Maiden. Mas o que chama a atenção é que eles preferiam mais ouvir programas humorísticos, principalmente envolvendo o futebol, e não raro chegam a falar mal de roqueiros veteranos, como Led Zeppelin, Rolling Stones e Who.
Esse reacionarismo juvenil acabou desgastando a cultura rock e permitiu que a "alegria" da música brega-popularesca prevalecesse. Por ironia, a dupla 89 FM / Rádio Cidade, por mais que tentassem se vincular à imagem do rock, acabaram ajudando na decadência do rock e no crescimento da música popularesca entre os jovens brasileiros.
Mais preocupadas com a estrutura empresarial, as "rádios rock" acabaram, hoje, se limitando à mera "existência", sem ter o carisma nem a competência das rádios de rock do passado. Também apegadas ao hit-parade, as "rádios rock" dos anos 1990 para cá não acompanharam as transformações da Internet e hoje só servem à sua bolha de ouvintes.
Já os roqueiros autênticos, hoje, deixaram de ouvir rádio e passaram a se ocupar ultimamente com o streaming de álbuns e nos arquivos musicais do YouTube.
BIBLIOGRAFIA
FIGUEIREDO, Alexandre. RADIALISMO ROCK: POR QUE NÃO DEU CERTO?. Como um segmento diferenciado se rendeu à mesmice do rádio FM convencional. 2.ed. revista e ampliada. Niterói: Independente, sob publicação da Amazon, 2023.
MELLO, Luiz Antônio. A ONDA MALDITA. Como Nasceu e Quem Assassinou a Rádio Fluminense FM. São Paulo, Editora Xamã, 1999.
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