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A CLASSE DOMINANTE QUE QUER "SUBTITUIR" O POVO BRASILEIRO

EM 1964, AS FAMÍLIAS CONSERVADORAS PEDIRAM A QUEDA DE JOÃO GOULART E DEFINIRAM A DITADURA MILITAR COMO "REVOLUÇÃO DEMOCRÁTICA". HOJE SEUS NETOS APOIAM A REELEIÇÃO DE LULA, QUE HOJE SERVE A INTERESSES DA BURGUESIA "ILUSTRADA". NA FOTO, MARCHA DA FAMÍLIA EM BELO HORIZONTE EM MAIO CELEBRA A DITADURA INSTAURADA UM MÊS ANTES.

Por Alexandre Figueiredo

Vivemos uma situação complexa e surreal que se torna invisível nas narrativas dominantes que circulam nas redes sociais e movimentam o cotidiano dos brasileiros. Trata-se da influência da classe dominante no "desenho" dos padrões culturais que prevalecem no nosso país, vários deles relacionados a valores precarizados e a um conservadorismo flexível que permite o hedonismo desenfreado em determinados contextos.

Aparentemente, o Brasil vive "novos tempos", supostamente preparado para ser país desenvolvido e pretensamente se destacando na vida planetária, com subcelebridades viajando constantemente para o exterior e famosos estrangeiros frequentando constantemente o nosso país.

Politicamente, o Brasil, em termos oficiais, se proclama "ter atingido a maturidade política" através do presidente Lula e seu projeto de "democracia". As instituições parecem estar funcionamento plenamente, a economia é tida sob controle e o povo se sente na liberdade plena de exercer seus direitos e ser reconhecido pelo cumprimento de seus deveres.

No entanto, culturalmente o nosso país ainda preserva intatos os padrões de injustiças, meritocracias e precarizações que eram mais caraterísticos da Era Geisel. A hoje autoproclamada "sociedade do amor", que se diz "democrática" e "defensora da justiça e da liberdade" é, na verdade, herdeira das velhas elites golpistas que pediram a saída de João Goulart no poder em 1964.

Quem hoje detém os benefícios plenos da Economia, do Lazer e da Cultura, na verdade, não é todo o povo brasileiro e as classes populares nem chegam a ver a sombra dessas benesses. Hoje o Brasil parece brilhar apenas para uma elite quantitativamente flexível, que eu, tomando emprestado um termo do sociólogo Jessé Souza, a "elite do atraso", denomino de "elite do bom atraso".

Essa elite é composta de uma frente ampla social que se torna uma minoria um pouco "maior" do que os chamados 1% dos revoltados contra Dilma Rousseff, num dos últimos episódios em que as classes dominantes revelaram seu golpismo explícito e assumido.

Hoje são os 10% que comandam o sistema de valores do nosso país. A classe dominante "flexível" de hoje, "democrática" e "sintonizada com os novos tempos de amor e paz" (sic), é composta sobretudo por uma elite burguesa composta principalmente de empresários do entretenimento, da pequena burguesia de classe media abastada, com acesso ao consumismo pleno de bens, e de famosos e sub-famosos dotados de um excedente de dinheiro que no entanto não lhes dá o poder decisório dos grandes grupos financeiros, jurídicos e políticos.

Junto a essa elite, temos apenas os pobres remediados, a pequena parcela de pessoas que moram em subúrbios e roças que possui o direito do "sol" social, do consumismo pleno de bens e do acumulo de grana a partir de oportunidades como ganhar em loterias ou em promoções de produtos diversos, de detergentes a refrigerantes. Estes ex-pobres são conhecidos como "novos ricos".

Essa elite de burgueses, famosos e ex-pobres é a que domina as narrativas e o senso comum da sociedade brasileira, ditando os valores socioculturais a serem apreciados, consolidados e perpetuados. A ênfase na cultura musical e comportamental popularescas, no hedonismo festivo burguês e na religiosidade conservadora mostra o quanto essa "moderna sociedade do amor" nada tem de moderna nem de amorosa, em dado momento mostrando o seu DNA golpista dos avós de 1964.

Fenômenos como a música brega-popularesca, o medievalismo travestido de "futurismo" dos "médiuns espíritas", o hedonismo brega-identitário simbolizado principalmente pelo "funk", a gourmetização do romantismo cafona, a fabricação de gírias sem serventia social verdadeira (como "balada", jargão de jovens ricos da Faria Lima relacionado ao consumo de ecstasy, a tal "bala"), a superestima de ídolos medianos como Michael Jackson revelam o quanto esse culturalismo é um viralatismo enrustido.

Da mesma forma, também se notam outras aberrações: um mercado de trabalho injusto que exige muita experiência e pouca idade, a supervalorização do futebol levada às últimas consequências, o prazer suicida de exaltar o consumo de cervejas e cigarros - confirmadamente cancerígenos, segundo dados recentes da comunidade médica - e até mesmo a rebeldia caricata e piegas do "rock" de empresas burguesas como a Artplan e a rádio 89 FM.

Esse culturalismo vira-lata é maquiado de "boas coisas da vida", valores próprios e privativos de uma elite que se impõem como "universais" e "atemporais", mesmo quando refletem os interesses de uma elite que se consolidou, nas caraterísticas atuais, durante o "milagre brasileiro" do governo Médici, em 1973-1974.

Essa elite sempre dominou o Brasil, de alguma forma. Mesmo os ex-pobres que se tornam "novos ricos" e simbolizam a "pobreza de plástico" das comédias de novelas e do cinema brasileiros, estão mais próximos de uma parcela de escravos com alguma aproximação socioafetiva com as famílias da Casa Grande, ou então dos capitães-do-mato (escravos que se tornam aliados dos senhores de engenho), destinados a capturar escravos fugitivos e que se tornaram precursores dos jagunços e capangas de hoje.

Todavia, é somente sob a vitoria eleitoral de Lula e do governo que hoje segue seu curso que as classes dominantes do nosso país podem exercer sua supremacia de maneira oculta - sempre alegando que "os tempos mudaram" e "o momento é de união" - , com o poder social agora manifesto em tempos de paz, diferente dos seus antepassados, que só poderiam dominar mediante um cenário de tensões e resistências profundas.

NEGACIONISMO FACTUAL: FOBIA DE SENSO CRÍTICO

Um dado preocupante nos últimos tempos é que a sociedade "democrática" sente profunda fobia justamente pelo pensamento crítico, pelo debate e pela análise de fatos que soam desagradáveis ao contexto "festivo" do Brasil de hoje. É um negacionismo factual que faz as narrativas oficiais renegarem a realidade, quando ela soa desagradável e incômoda aos interesses das forças dominantes atuais.

O boicote a textos contestadores e, em contrapartida, as réplicas que preferem "contestar" a contestação, sempre usando de forma leviana termos como "intolerância" para manter a supremacia de um ponto de vista hegemônico, mostram o quanto o meu neologismo do AI-SIMco - um trocadilho "positivo" com o termo AI-5 que remete ao decreto que tornou a ditadura militar mais repressiva - torna-se exato para definir a situação do nosso país, em que as forças dominantes de hoje só aceitam o debate, desde que não se faça o debate.

A fobia do senso crítico é usada sob o pretexto de que o pensamento crítico é um "patrimônio" de ressentidos intelectuais europeus, ligados a correntes distópicas recentes ou herdeiros do antigo pensamento estruturalista e existencialista. E isso diz muito quando a burocracia das elites acadêmicas nos cursos de pós-graduação universitários é capaz de vetar aspirantes com um potencial intelectual comparável ao que, na Europa, se manifestou em nomes como Umberto Eco e Jean Baudrillard.

Rejeitar o pensamento crítico é uma atitude não só manifesta pelo antiintelectualismo "popular" nas redes sociais, mas também pelos meios acadêmicos, que preferem a produção de monografias fundamentada numa cosmética discursiva, com um rigor formal impecável mas que disfarça temáticas insossas e complacentes que, depois de seus quinze minutos de fama da exposição das teses de fim de curso, vão repousar abandonadas nas estantes, com as monografias sujeitas a atrair somente as "demandas" de insetos e fungos.

Na verdade, o pensamento crítico iria desmascarar os mecanismos inconvenientes que se utilizam para apressar a obtenção das mais diversas vantagens dos detentores de poder. Seria denunciar as falcatruas e o clientelismo que permitem que até mesmo antigos defensores da justiça social se corrompam em meio a alianças espúrias e pragmáticas.

Hoje essa preocupação em banir o senso crítico ganha contornos mais "amplos", quando há uma necessidade de uma elite de "predestinados" se beneficiar da pretensa atribuição do Brasil como um "país desenvolvido", uma potência de araque forjada a partir da facilidade discursiva dos "relatórios" de supostos "recordes econômicos" do governo Lula, narrados com a facilidade e a rapidez dos parágrafos e dos gráficos, ainda que essas narrativas entrem em conflito com o cotidiano vivido pela população.

Há uma sensação de apreensão quando o pensamento crítico se manifesta no Brasil, pois ele revelaria o aspecto sombrio das elites dominantes que, hoje, se definem como "democráticas" e "dotadas de profunda responsabilidade social". O pensamento crítico revelaria o passado dessas elites, historicamente associadas a práticas genocidas, exploração do trabalho escravo, fraudes diversas e golpismo político.

Por isso há um empenho da parcela dirigente da elite do bom atraso, a burguesia propriamente dita, para transformar o Brasil num "parque de diversões", abafando qualquer chance de algum protesto social real. Os movimentos estudantis foram substituídos pelos estudantes infantilizados mais preocupados em contar piadinhas de suas vidas pessoais. Camponeses e proletários foram jogados à margem da opinião pública. Roqueiros são domesticados pela ação farialimer comandada pela Artplan e 89 FM.

Com isso, se promove uma "democracia do sim" que força uma "paz social" na qual a defesa das instituições serve de pretexto para que as decisões das classes dirigentes sejam sempre aceitas. É um processo no qual se mantém a mesma meta de conformismo social dos tempos do AI-5, junto aos benefícios que os privilegiados (burgueses, famosos e ex-pobres enriquecidos) obtiveram nos tempos do "milagre brasileiro" e retomam a mesma vantagem "ressignificada" pelo atual cenário de Lula 3.0.

Todo esse esforço é feito para que a elite do bom atraso se torne, gradualmente, a única a ser destinada a povoar o Brasil no futuro. Em outras palavras, as mesmas elites que, um dia, montaram o IPES-IBAD para dar um suporte "científico" para sustentar os movimentos contra João Goulart em 1964, agora possuem a meta de "substituir" o povo brasileiro, se convertendo numa elite "democrática" dos tempos atuais.

Por isso, os netos das famílias golpistas de 1964 capricham no populismo culturalista, com trajes informais, falando português errado, expressando fanatismo pelo futebol mesmo quando, em suas empresas, fazem comentários sobre algum time local, e esbanjando uma sede violenta pela cerveja, enquanto ouvem o mais constrangedor som brega-popularesco.

Portanto, essa burguesia passou a calçar chinelos, enquanto reserva os sapatênis para formalidades cada vez mais informais, contagiando até CEOs que, em suas palestras empresariais, precisam fazer alguma piada no estilo dos influenciadores digitais e comediantes de estandape, para soar "modernos" e "socialmente mais agregadores".

A ideia é da classe dominante querer se "reinventar" para continuar dominando, mas sem que o grande público possa perceber isso com facilidade. Daí um padrão de narrativas, gostos, pontos de vida e atitudes que precisam ser difundidos nas redes sociais para que, assim, se exerça uma "democracia" que, por mais que soe plena, não difere muito da "democracia" defendida pelos vovôs e vovós de seis décadas atrás. A burguesia brasileira sempre quis substituir o povo brasileiro.

Daí que a classe dominante hoje mudou para continuar a mesma. E se seus antepassados exterminavam índios, açoitavam escravos e realizavam golpes políticos, a burguesia de hoje pretende parecer cool e socialmente "mais engajada". Se os vovôs e vovós marchavam para derrubar João Goulart, seus netinhos e netinhas de hoje querem reeleger Lula.

FONTES: Manchete, O Cruzeiro, O Globo, Carta Capital, Brasil 247, Blogue Mingau de Aço (fora do ar), Blogue Linhaça Atômica.

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