Por Alexandre Figueiredo
Símbolos de um culturalismo aparentemente de fácil apelo popular, mas também estruturalmente conservador, o apresentador Sílvio Santos e o cantor Roberto Carlos foram notícias respectivamente pelos seus desfechos respectivos. Sílvio faleceu depois de vários dias internado, aos 94 anos incompletos, e Roberto anunciou sua aposentadoria simbólica ao decidir pelo encerramento, previsto para o ano que vem, do seu especial de Natal, principal vitrine para sua carreira.
Roberto também conta com idade avançada, tendo hoje 83 anos de idade, e há muito não renova sua legião de fãs, pois há muito tempo não representa mais algum vestígio de modernidade sonora, desde que mudou sua orientação musical a um romantismo mais conservador, a partir de 1978, justamente depois de começar a fazer os especiais natalinos da Rede Globo de Televisão.
E lembremos que o antigo parceiro de composições, Erasmo Carlos, faleceu em 2022, curiosamente num caminho oposto ao do "amigo de fé e irmão camarada", pois o cantor carioca, diferente do ídolo capixaba, estava começando a se reciclar musicalmente, buscando se entrosar com um público jovem e aparecendo, pela última vez, em um filme estrelado pelo jovem casal Larissa Manoela e André Luiz Frambach.
Sílvio e Roberto eram muito amigos e o apresentador já havia defendido o cantor em um depoimento dado num programa de 1968. Ambos também tiveram negócios empresariais fora de suas carreiras, embora Sílvio fosse famoso pelo seu principal negócio empresarial, a rede de televisão SBT (Sistema Brasileiro de Televisão) e produtos associados como o Baú da Felicidade, a Tele Sena e a marca de cosméticos Jequiti.
Curiosamente, Sílvio havia sido sócio, durante um breve período do começo dos anos 1980, da Viação Itapemirim - a mesma que, hoje, foi repaginada e arrendada pela empresa Susantur, de Santo André, no ABC paulista - , então uma empresa sediada na terra natal de Roberto, Cachoeiro do Itapemirim. Já Roberto Carlos, como empresário, é conhecido pelo seu envolvimento no mercado imobiliário.
Tanto apresentador quanto cantor simbolizam um tipo de país que se desenhou a partir de 1974, ano em que a ditadura militar deixou apenas de reprimir opositores para conceber culturalmente o Brasil que hoje conhecemos, estabelecendo um sistema de valores, marcado por um culturalismo popularesco que privilegia a classe média abastada, beneficiária do "milagre brasileiro", que zela por valores conservadores, mesmo aqueles que apresentam um aparato de modernidade e pretensa subversão social.
Os dois grandes ídolos sempre foram conservadores, e apoiaram abertamente a ditadura militar. Também estiveram associados ao processo cultural de domesticação do povo pobre, estratégia que foi decisiva para a ditadura militar se afrouxar e se retirar aos poucos, quando viu que as classes populares deixaram de representar uma ameaça séria para os privilégios das classes dominantes, diante da sentinela cultural da classe média abastada, hoje a pequena burguesia que domina as narrativas nas redes sociais.
Na cultura brega-popularesca, as atuações de Sílvio Santos e Roberto Carlos foram decisivas e intensas. No caso de Sílvio, ele "redesenhou" a cultura popular de forma que fez o povo pobre ficar resignado com sua inferioridade social, vivendo de pequenas consolações que incluem gostar da música precarizada dos ídolos bregas mais antigos e os ídolos popularescos que ao longo dos anos passam a dominar as paradas de sucesso, praticamente sufocando os espaços de divulgação da MPB e do Rock Brasil, estes vivendo na margem do sucesso.
A programação popularesca de Sílvio também fez o povo pobre se tornar caricatura de si mesmo, através de seus diversos programas, do próprio Programa Sílvio Santos ao humorístico A Praça é Nossa, passando pelo Viva a Noite, do falecido discípulo do homem-sorriso, Gugu Liberato, que apostou na erotização através da Banheira do Gugu.
Liberato também apresentou o "sertanejo" para a classe média abastada, forçando a indústria fonográfica a contratar Chitãozinho & Xororó para um filão antes reservado para a MPB, num dos primeiros esforços de empurrar a música brega para um público de maior poder aquisitivo e, supostamente, com melhor nível educacional.
O apresentador do Viva a Noite, depois rebatizado Sabadão (e com uma versão dominical chamada Domingo Legal, que aquecia o público para o Programa Sílvio Santos), também promoveu o sucesso do finado grupo Mamonas Assassinas, que, com seu "pop-rock" mesclado com tendências brega-popularescas - com influências de Waldick Soriano, breganejo e sambrega, e do humorismo popularesco de Chaves/Chapolin, sucessos exibidos no SBT - , fez quebrar a antiga resistência do público jovem para o comercialismo da música brega-popularesca, que ampliou facilmente suas reservas de mercado.
Sílvio também fez o público se acostumar mal com o noticiário popularesco que, nos últimos 40 anos, persiste nos fins de tarde mostrando, de maneira irresponsável e desrespeitosa, notícias policiais sob o rótulo farsesco de "jornalismo investigativo" (que, de "investigativo", só tinha o nome, que servia de mero eufemismo para "sensacionalista"), através dos pioneiros O Povo na TV e Aqui Agora (na verdade, O Povo na TV só não se chamou Aqui Agora por problemas de copraite depois resolvidos).
Em contrapartida, Sílvio também fez o povo pobre fortalecer a religiosidade ultraconservadora, ao estimular, junto à TV Tupi e outros veículos da mídia conservadora que apoiava a ditadura militar, como um meio de combater a ação oposicionista da Teologia da Libertação católica.
Com isso, Sílvio foi um dos que contribuíram para transformar a pessoa de um charlatão religioso, um suposto "médium espírita", em "símbolo da caridade", através dos espetáculos sensacionalistas das falsas cartas "psicografadas" de pessoas comuns mortas, além das constrangedoras longas filas de miseráveis para receber essas supostas mensagens ou a levar pequenos pacotes de mantimentos que só serviam para a promoção pessoal do "médium", pois isso nada fazia para combater de verdade a pobreza.
Roberto também homenageou esse charlatão religioso através de uma música intitulada "Homem Bom", adjetivo parecido com o que ele usou ao manifestar seu apoio político a Jair Bolsonaro, o que fez desgastar a imagem do antigo artista pop brasileiro que, no começo dos anos 1990, já chegou a ser cortejado pelos intelectuais de centro-esquerda como um possível símbolo da modernização da cultura jovem brasileira.
Nos últimos anos, Sílvio e Roberto levaram ao extremo esse conservadorismo, pois o dono do SBT também apoiou Jair Bolsonaro. E, hoje, com Sílvio morto e Roberto saindo de cena aos poucos, já que não produz um álbum de inéditas há mais de dez anos - diferente do tempo em que o cantor capixaba lançava sempre um álbum todo ano, quase sempre com o próprio nome do cantor no título - , se cogita se o Brasil conservador e popularesco estaria finalmente encerrando seu ciclo de 50 anos.
Aparentemente, isso ainda não acontece porque o Brasil "desenhado" em 1974 por esse culturalismo continua firme e forte, intensamente difundido pelas redes sociais e agora manifesto por um "saudosismo de resultados" que gourmetiza a música de ídolos medíocres do passado, como Odair José, Chitãozinho & Xororó, É O Tchan e Michael Sullivan.
O culturalismo brega e seus derivados aparentemente não dão sinais de que irão terminar, mas dois de seus idealizadores, um falecido e outro simbolicamente "aposentado" - já que Roberto está para perder sua maior vitrine, os programas natalinos da Globo - , já perderam sua influência decisiva.
O que se sabe é que esse Brasil culturalmente conservador não consegue disfarçar esta postura, mesmo quando as esquerdas acolhem esse culturalismo sob o pretexto de que "fazem o pobre sorrir". Mesmo com narrativas supostamente progressivas, esse conservadorismo é evidente e escancarado, por mais que as narrativas hegemônicas difundidas pela midia e pelas redes sociais não admitam essa condição.
Em todo o caso, sem os "comandos" de Sílvio e Roberto, o Brasil continua conservador. A esperança é que, pelo menos, esse culturalismo conservador seja assumido e evidenciado pela opinião pública.
FONTES: Carta Capital, Caros Amigos, Manchete, O Globo, UOL, Blogue Mingau de Aço (fora do ar), Blogue Linhaça Atômica.
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